quarta-feira, 20 de agosto de 2008



Gravura: Yves Klein


DANÇA PRIMORDIAL

Quantas vezes vi a loucura me percorrer cegamente as entranhas?
Lavrando do fundo de um corpo sua flor brutal,
libertando
a dança desregrada que atravessa a voz,
recompondo
na noite o ouro intenso onde a Lua faz ressaca.

Estou completo em minhas paisagens.

De uma vida inteira absorvo a marcha,
canto as estações abertamente,
tocando com o esquecimento as margens,
que se distanciam
e evocam
toda pureza de uma arte.

Quantas vezes essa loucura corrompeu o último enlace
do medo que se abre ao fim de cada feixe de encanto
no alimento obscuro,
colhido do apuro
das visões imensas?

Toda obra é terrível e sangra
na memória a sua imagem.

No auge insondável desse estrondo,
canto
em volta de uma dor,
o dorso se contorce,
no centro,
multiplicando o gesto,
um eco indefinido devora em travessia
centenas de mundos construídos
e sonhados.

Pois a música se apossa da ébria lentidão do meu engano.



ACORDE NOTURNO

O acorde da noite
mais uma vez tombou
sobre meu corpo migrante,
e, sendo a música a vastidão no instante,
deixei-me sonhar em volta dela.

Ela que me tocou na noite,
na correnteza de músicas estranhas,
como mar revolto entre as sombras dos naufrágios.

E navegamos,
sacrificando o mar, multiplicando as margens,
a infinita música dos presságios,
exilados nessa travessia,
onde somente as estrelas morrem por nós.


CRIANÇAS

Sempre que vejo crianças,
vejo-as correndo, movendo o tempo,
todas misturadas ao vento.
Sempre me aproximo, são quentes e velozes,
tão acostumadas aos meteoros,
dentro da cabeça, todas correndo
no tempo.

Lembro das horas tristes da infância,
a vela que queimava a escuridão.
Tive medo, o abismo do quarto,
tão negro, misturado no tempo.
Quando anunciavam o dia,
o leite quente com biscoito,
os meteoros para fora,
correndo, todos movendo a aurora.
Eu me lembro.

Sempre que vejo crianças,
vejo-as escritas por dentro.
Todas elásticas,
por dentro e por fora,
tão velozes que sinto medo,
repetindo minha voz primaria
inúmeras vezes até que me lembre
como mover o ar correndo.
Os meteoros na cabeça,
sempre que vejo crianças
absorvidas em seus córregos quentes,
onde movem a água,
voam e correm como meteoros.
Depois do leite, a risada,
como um templo,
brincava com meus avós.

O menino vendendo balas na praça
me faz dar rodopios por dentro,
meteóricos.
Contemplo-me num trabalho radioso,
carpindo as partes doces e ocultas
da memória,
no ar, no vento,
na respiração.
Busco uma criança
como um brusco cata-vento,
veloz, extrema
e a anterior à noite.

As crianças se deitam com medo do silêncio.
Cada casa tem uma criança na imaginação.
Felipe Stefani é poeta, artista-plástico e editor da Revista Cultuar em:
É um dos mais interessantes poetas surgidos nos últimos dez anos, seus poemas são carregados de uma atmosfera onírica e de uma religiosidade sutil.
Marcelo Ariel

2 comentários:

  1. "as crianças se deitam com medo do silêncio"
    parece que na nossa cultura as pessoas levam esse medo para a vida adulta...não conseguem conviver com o silêncio...

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  2. Não o conhecia. Ele é mesmo muito bom!

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