quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Por Flávio Viegas Amoreira

Alexandre Bonafim é desses raros poetas que fascinam tanto pela tessitura, densidade, erudição contida na forma-conteúdo da sua poderosa Obra de lobo da estepe, quanto pela voracidade cultural de quem lê Lezama Lima e Dora Ferreira da Silva com propriedade de mestre. No dia do lançamento do belíssimo livro de Lucius de Mello, ''Mestiços da Casa Velha'', depois de um papo genialmente heterodoxo (adoro adjetivos compostos!!! rs.) com Pedro Paulo Sena Madureira com direito ainda às presenças de Marta Suplicy e Alexandre Frota (todas as tribos de Sampa) na ''Livraria da Vila'' da Lorena saímos flanando odes anti-burguesas pela ''Paulicea Desvairada'' com Felipe Stefani, outro grande escritor. Escrevo aqui tendo ao lado presente inesquecível esse mesmo ''Paulicea Desvairada'' raríssimo presenteado por meus fraternos Márcia Costa e Alessandro Atanes: eles como o grande poeta Bonafim sabem que meu desvario é tão grande quanto as alamedas de minha querida Sampa: leiam Bonafim!
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Alexandre Bonafim e Flávio Viegas Amoreira, o Visconde de Santos

POEMAS DE SAGRAÇÃO DAS DESPEDIDAS
Alexandre Bonafim

I
Vem de longe, dos vales orvalhados
pela neblina, dos plátanos desnudos
pelos sonhos. Vem da terra onde a seiva
celebra raízes e seixos, acalanta sementes
e fontes em plenitude. Vem de muito longe,
das marés e das vazantes em lua cheia,
da fuga em despedida das garças do outono.
Vem do eterno além de todo espaço
e pousa, súbito, em nossos anseios,
ensinando-nos a delicadeza dos milagres.

II
O perfume da hortelã, quando incendeia
os sonhos, ensina-nos a exata precisão
das quimeras. Nessa hora de humana
fecundidade, tornamo-nos aprendizes
do orvalho, artesãos de ventos e abandonos.
E basta o leve acorde desse perfume
para despertar, em nós, a serena
sagração dos pássaros em despedida.

III
Quando chegaste, banhei teus pés em límpida água,
vesti tua nudez em alva túnica. Trazias no rosto
a distância dos desertos, a iluminura dos barcos
consumidos pelo sonho. Não tinhas nome, nem idade.
Nunca tiveste morada ou abrigo. Adejavas, serenamente,
às vezes, nos braços dos enamorados, no desassossego
dos solitários. Quando sentaste à mesa, repartiste
as quimeras, celebraste o vinho. Em nossos corações, um
acorde tremulava as folhas de uma árvore sem paisagem,
sem horizonte. No teu sentir, um menino balbuciava nossos
anseios mais caros, nossos devaneios mais secretos. Desde
o nascimento, sempre esperamos por esse encontro. Mas
como um rebento que subitamente germina, imprimiste
em nossos braços, a precisa inscrição dos areais ao vento.

IV
No princípio era o encontro
e tudo o que existia, o girar
da terra, as fases da lua,
a rutilância do mar ao fim
da tarde, enchiam-se de um
esplendor fulminante, encanto
a cravar no existir a fatalidade
do êxtase. Tudo tinha o dom
de transmutar-se em súbita
fulguração: os rios sedentos
de água, as pedras despidas
de brilho, os corações tombados
na amargura. O universo era
inteiro talhado pelo rosto dos
milagres, o mais amado rosto.
No lugar onde aflorou a presença
dos amantes, sempre estará
a nascer um perfume de pólen
e mel a desmentir o nada e a morte.

V
Desnudo-me nessas águas, nas palavras
sussurradas pela sombra dos anjos.
Visto a primeira luz da minha vida
e inauguro o casto vôo das andorinhas.
Costuro na pele uma fábula de mel,
um rito de pólen e, com a mansidão
dos rebanhos ao vento, com a calmaria
dos cordeiros serenos, refaço-me inteiro;
reergo-me de uma solidão sem pátria
e sem origem. Desnudado pela inocência
de todos esses gestos, preparo o trigo
e o vinho para a anunciação da tua chegada.

VI
Lentamente o existir se esboroa
em pólen, em iluminuras espargidas
pelo mar ao fim da tarde. Também
nossos rostos se dissipam, levemente,
no pulsar dos veleiros, na espuma
límpida a abraçar a luz das quilhas.
Em cada onda do fulgente oceano,
podíamos ver nossas faces desfeitas,
nossos sorrisos ancorados no cais:
pedras de sal contra a areia. Tanto
em nós amamos o amor, tão
intensamente nos integramos
na volúpia, que em nossos sonhos
um vôo de gaivotas traçou sua luz.
Por ser frágil, velas queimadas
pelo azul, a vida fez-se em perfeição:
dourada epifania a reluzir o infinito das águas.

VII
Os que morreram renascem, todos os dias, no cântico
de minhas veias; tangem, em mim, o sopro das flautas,
o acorde dos vinhedos rejuvenescidos pelo sol de maio.
Os que morreram respiram o infinito instante do mar.
São veleiros incendiados pela primeira estrela da manhã:
ressuscitam, em cada onda, em cada ilha, um sol a se findar
nos nascimentos. Os que morreram refulgem no vôo dos
pássaros marinhos, toda a eternidade de uma infância à beira
dos oceanos. São búzios a murmurarem o sopro das constelações,
seixos queimados pelas marés e luas cheias. Os que morreram
renascem, sempre, no dia em que o sol inaugurou a minha vida.

VIII
Lentamente uma escuna vincou nas águas
o total esquecimento de tudo o que não existe.
Por entre o silêncio, a tarde esvaiu-se,
sem se despedir... Eis que a noite visitou-me,
pousando em minha pele a solidão
de um farol à beira dos naufrágios.
Inesperadamente se fez a hora intacta
dos Oceanos. Desnudo, intensamente só,
oferendei meus sonhos à plenitude
das ondas. Tudo se vestiu de magnânimo
esplendor: fizera-se o instante da vida.
Na terra, nasceu a gravidade; constelações
prorromperam o alvoroço das luzes. Tudo
celebrou o existir pleno de dons e ternuras.
Sem me despedir, mergulhei nas águas profundas
do silêncio; renasci, inteiro, para a luz do sol.
Fez-se, enfim, o marulho de mil instantes em iluminação.

IX
Quando o silêncio lateja o vôo dos pássaros
noturnos, uma lua inscreve em nossos sonhos
a secreta caligrafia das galáxias. Nessa hora
de plenitude, um sol límpido, despido de nuvens,
esconde-se em cada poro de nossa pele. Somos
um eclipse de mistérios a inaugurar o nome
de cada estrela. Ao longe, os ciprestes, talhados
pelo esplendor da lua, tatuam em nosso rosto
o olhar daqueles que nos amarão em viva eternidade.
Nesse instante de êxtase, somos apenas a quietude
dos astros a incendiar o nome de cada constelação.

X
Essa dádiva que a vida, subitamente,
nos oferenda, frondosa palavra a fincar
raízes no inominado, ramo de constelações
que, em plena festa, queima nossa surpresa;
essa presença, tão pressentida, tão desejada,
a ensinar-nos a leve sabedoria do vento a tramar
os ninhos, dos favos a maturarem o mel; esse rosto,
esses olhos, esculpidos em nossa voz desde
o nascer do mundo, desde a gestação de nossa
alma; essa iluminada aparição que, sem alarde
chega, talhando, em cada poro de nossa pele, um cais
aureolado de pássaros e de silenciosos crepúsculos.

Alexandre Bonafim é poeta, contista e ensaísta. Nasceu em Belo Horizonte, mas passou a maior parte da vida pelas terras do estado de São Paulo. É eternamente mineiro em exílio, mineiro nas raízes da vida. É mestre em literatura brasileira. Defendeu a seguinte dissertação: 'A graça poética do instante: poesia e memória nas crônicas de Rubem Braga'. Atualmente é doutorando pela USP, em literatura portuguesa. Defenderá a seguinte tese: 'O silencioso acorde dos Deuses: o sagrado na poesia de Dora Ferreira da Silva e de Sophia de Melo Breyner Andresen'.

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