sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Por Alessandro Atanes, para o PortoGente

Hoje o antropólogo Claude Lévi-Strauss completa 100 anos. O mundo intelectual inicia uma série de homenagens e debates sobre sua obra. Em São Paulo, a USP realiza o ciclo de conferências “Sentidos de Lévi-Strauss” entre os dias 27 e 11 de dezembro. Foi para a formação da USP que esse professor secundário veio ao Brasil em 1935 junto com a missão francesa que iria dar início às atividades acadêmicas de Ciências Humanas em nosso Estado.

Essa viagem, que começa por Santos, marcou profundamente sua obra porque, embora tenha ficado apenas três anos lecionando, lhe permitiu se relacionar com povos indígenas em São Paulo, Paraná, Goiás e Mato Grosso, contato que lhe daria os elementos e a matéria-prima para a confecção de obras-primas como Tristes Trópicos (1955) ou O cru e o cozido (1971).

Os dois mais importantes cadernos culturais dos jornais paulistas, o Mais! (Folha de S. Paulo) e o Caderno 2 (Estadão), também dedicaram páginas ao mestre neste domingo. No Estadão, Gilles Lapouge, correspondente em Paris, inicia seu texto no caderno destacando a preferência do antropólogo pela continuidade (tanto que antes da vinda ao Brasil tinha lido os relatos de viagem ao nosso país de Jean de Léry, que esteve entre os tupis no século XVI):

"Claude Lévi-Strauss nasceu em 28 de novembro de 1908, em Bruxelas, de pais franceses. Em breve será centenário. Isso é uma façanha, mas as relações que Lévi-Strauss manteve com a passagem do tempo sempre foram estranhas. Ele prefere o tempo que não passa."

A professora de Antropologia na Universidade de Chicago Manuela Carneiro da Cunha, aluna de Lévi-Strauss entre 1967 e 1970, também no Estadão, destaca a predileção do professor pelas “grandes extensões” do Brasil e pela geologia:

"Qual foi o Brasil que Lévi-Strauss conheceu? Foi, antes de mais nada, o Brasil das grandes extensões ainda não domesticadas, o Brasil das macroregiões que tanto contrastas com as microregiões do Velho Mundo. Um Brasil que começava a ser “desbravado”. Uma característica que surpreende neste filósofo e antropólogo é a sua atenção à paisagem e à história natural."

Na Folha, a antropóloga Beatriz Perrone-Moisés, professora da USP, ressalta as descrições das paisagens brasileiras (os “trópicos de sonho” do Rio de Janeiro e Santos):

"Lévi-Strauss descreve o Brasil, sobretudo em Tristes Trópicos (mas também na introdução a Saudades do Brasil, de 1994), com cheiro, ruído, tato, paladar, audição e visão, operando constantemente com códigos sensoriais (...)."

A partir destes comentários, podemos perceber a gênese da descrição que Lévi-Strauss faz de Santos e do litoral paulista em Tristes Trópicos:

"O litoral entre o Rio e Santos ainda propõe trópicos de sonho. A cadeia costeira, que em pontos sobrepassa os dois mil metros, desce até o mar e o recorta com ilhas e enseadas; praias de areia fina, bordeadas de coqueiros ou de selvas úmidas transbordantes de orquídeas (...). Pequenos portos separados por uma distância de cem quilômetros abrigam os pescadores em moradias do século XVIII, agora em ruínas, construídas de antanho por armadores, capitães e vice-governadores, com pedras nobremente talhadas.
(...)
Depois de ter se saciado de ouro, o mundo teve fome de açúcar, mas o açúcar também consumia escravos. O esgotamento das minas, precedido, ademais, pela devastação das selvas que proporcionavam combustível aos fornos, a abolição da escravidão e, finalmente, uma demanda mundial cada vez maior, orientam o São Paulo e seu porto, Santos, à produção de café. Primeiro amarelo, depois branco, vira por último negro. Mas, apesar dessas transformações que fizeram de Santos um dos centros do comércio internacional, o lugar continua a ser de uma secreta beleza; enquanto o navio penetra devagar entre as ilhas, sinto aqui o primeiro choque dos trópicos. Um canal verdejante nos fecha. Estendendo a mão, quase se pode agarrar essas plantas que no Rio de Janeiro retinha ainda à distância em seus invernáculos pendurados pelo alto. Em um cenário mais recatado se estabelece contato com a paisagem.
A região, o interior de Santos – planície inundada, crivada de lagoas e pântanos, entrecortada de rios, estreitos canais cujos contornos são eternamente esbatidos por uma neblina nacarada – parece a própria Terra emergindo no princípio da criação."

A expressão-chave da passagem é “apesar dessas transformações que fizeram de Santos um dos centros do comércio internacional”. É o “apesar” que indica a preocupação do antropólogo com a longa duração, com a “terra emergindo no princípio da criação”, paisagem que não se encontra nas “microregiões” do Velho Mundo.

Epílogo
Mas não só São Paulo e Paris que homenageiam o maior intelectual vivo do mundo. No sábado, o escritor Flávio Viegas Amoreira, o compositor Gilberto Mendes e o pianista Antonio Eduardo se reuniram na Pinacoteca para um espetáculo lítero-musical em lembrança ao centenário, que consistiu na leitura do trecho acima e de outras passagens sobre Santos por Flávio, pela apresentação de composições do álbum Da areia também se vê o mar, de Antonio Eduardo, e da exposição de Gilberto Mendes sobre o clima intelectual dos anos 30 e sobre a formação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Mendes lembrou que Lévi-Strauss era um professor desconhecido e que só de volta à França alcançaria o patamar de um dos mais importantes intelectuais do século XX e principal nome do estruturalismo, que, na antropologia, concentra-se, na explicação da Folha, “no modo como elementos de um sistema se combinam – e não em seu valor intrínseco”.

Vale registrar como a diferença de perspectiva nos oferece descrições muito diferentes da mesma realidade. Essa mesma Santos dos anos 30, que parecia a Terra emergindo da criação para o antropólogo, era cosmopolita para o maestro ligado à vanguarda musical. Vejamos como Gilberto Mendes, nascido em 1922, descreveu em 1994 a cidade nos anos 30:

"Os dancings da Rua General Câmara, Big Boy Williams, figura histórica do velho jazz, citado em livros, tocando no Coliseu, depois viria Booker Pitman, Santos era também um pouco New Orleans, Baton Rouge. Saudades do Parque Balneário Hotel, sua boîte, seu grill de verão, as orquestras argentinas de Osvaldo Frasedo, Osvaldo Norton, o fabuloso pianista Robledo, o saxofonista Bolão começando carreira, bem jovem. E o fabuloso band leader Stan Kenton, em viagem marítima de repouso, trazido de bordo para uma tarde inteira conosco – inacreditável! - na cada de Moise, pai do saxofonista Roberto Sion, ali na Avenida Washington Luiz, explicando-nos a diferença entre o seu arranjo politonal revolucionário e o swing clássico de Benny Goodman. Uma aulinha particular de Stan Kenton, já pensaram? Enquanto o navio não partia... Um gentleman!
Aquele trecho na Avenida Presidente Wilson, entre a Rua Quintino Bocaiúva e o Gonzaga, o fantástico Gonzaga, era a minha riviera elegante, sofisticada, cosmopolita, um pouco Viena e Budapeste, Marta Eggerth e Jan Kiepura em Das Hofkonzert, da velha UFA, Tyrone Power em Café Concerto, em outro momento Fred Astaire e Ginger Rogers em Swing Time, Shal We Dance. Aqueles prédios estranhos – ainda resta um – me faziam pensar em estranhos prédios, também, das praias de Los Angeles (ou era tudo imaginação, existiriam mesmo esses prédios em Los Angeles? Onde eu vira tudo isso?). Esse é o pedaço dos anos 30 da cidade, dos anos 30 como eu senti, da era do swing, de Benny Goodman and his orchestra, de Martha Tilton, que eu ouvia no programa Popeye da Rádio Record, às quatro da tarde, bolando aula, a maravilhosa voz de Renato Macedo comentava as músicas. Um dia ele veio a Santos e reconheci sua voz na Rádio Atlântica..."

Terra no momento da criação ou centro do comércio internacional?

Por que não as duas?

Referências
Vários autores. O descobridor da América. Mais!, Folha de S. Paulo. São Paulo, 23/11/2008.

Vários autores. Lévi-Strauss 100 anos. Caderno 2, Estado de S. Paulo. São Paulo, 23/11/2008.

Claude Lévi-Strauss. Tristes Trópicos. Barcelona: Paidós, 1988 (1ª edição 1955).

Gilberto Mendes. Uma Odisséia Musical. São Paulo: Edusp, 1994.

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