terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Por Alessandro Atanes

Sei que as festas estão chegando, mas outra força de fim de ano, a retrospectiva, aponta para um tema nada natalino, “o mal-estar na civilização”, expressão com que Sigmund Freud nomeou um de seus mais importantes livros, publicado em 1930, entre as guerras mundiais. Isso porque 2008 contou com edições brasileiras de dois dos principais autores contemporâneos: o chileno Roberto Bolaño e o português Gonçalo M. Tavares.

Mais do que descrever fatos, a contribuição da Literatura para a História consiste em elaborar conteúdos que captem o espírito dos tempos sem abrir mão da narrativa ficcional e da invenção da linguagem. A relação entre forma e conteúdo nas obras destes dois autores coloca ambos como artífices privilegiados da literatura atual (ainda que Bolaño tenha morrido prematuramente em 2003 aos 50 anos de uma doença no fígado) e, por isso mesmo, dá nova dimensão à maneira como a escrita literária produz conhecimento sobre os fatos do mundo.

Vamos começar por Tavares, de quem a Companhia das Letras acaba de publicar Aprender a rezar na era da técnica, último volume da tetralogia O Reino, série de romances em que seus personagens arquetípicos são afetados pelo totalitarismo técnico e político, pela ditadura e a guerra. É dele também a série O Bairro, em que o estilo literário e os temas de vários autores são personalizados em “senhores” de uma vizinhança que é a própria literatura (em Porto Literário tratei do jovem autor, ele nasceu em 1970, em Um bairro chamado literatura, A política no livro e a política para o livro e A reflexão das notas).

Esses personagens d’O Bairro, como o Senhor Calvino (Ítalo Calvino) ou o Senhor Brecht (Bertold Brecht), são bem característicos de como a partir do próprio universo literário (a temática de cada um dos autores) Gonçalo Tavares consegue criar relações com o mundo ao abordar a fantasia, o absurdo e a imaginação. O senhor, essa forma de tratamento tão portuguesa, é, na obra de Gonçalo, o Senhor Personagem, de cujas ações (ou inações) dependem o enredo dos livros.

Em Aprender a rezar na era da técnica, a precisão e a arrogância cirúrgica de um médico, Lenz Buchmann, é a metáfora da técnica cujos preceitos acabam por definir as relações sociais:

"O organismo doente era, para ele, materialmente culpado e, nesse sentido, Lenz construía nos seus raciocínios uma moral de tecidos, uma moral composta por células pretas ou brancas, células queimadas ou intactas, e neste campo ser imoral era não funcionar.
(...)
O seu bisturi era, isso estava claro, o mensageiro da precisão e da rectidão. A sua mensagem era a linha recta, o endireitar do desvio. O organismo doente, ou uma parte dele, entrara inadvertidamente por um atalho e o bisturi relembrava materialmente e com a sua força qual o caminho certo, qual a estrada principal".

Em tempos incertos, pós queda do Muro de Berlim, em que muitos se enganaram alegando o “fim da história”, a obra de Gonçalo M. Tavares, principalmente a série O Reino, retoma o clima de O homem sem qualidades, do austríaco Robert Musil, livro cuja primeira parte foi publicada no mesmo ano de O mal-estar na civilização e, como fazem as obras-primas, reflete, ainda que pelas lentes não objetivas da ficção, o tal do espírito dos tempos (zeitgeist). Vale citar que o próprio Musil serviu como oficial na I Guerra.

O homem sem qualidades de Musil é um protótipo do homem moderno para quem valores como honra nada dizem e para quem a técnica é o novo Deus e sagrado é só o que pode ser dimensionado, medido, projetado e construído. O homem sem qualidades é o homem do século XX, desse “breve século XX” que no entendimento do historiador Eric J. Hobsbawn começa em 1914 com o início da I Guerra e vai até 1991 com a queda da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Gonçalo Tavares atualiza os temores entreguerras que percebemos em O homem sem qualidades: O Reino é, entre outras metáforas, O Mercado, essa figura difusa que, como um grande irmão de Orwell, é ícone do totalitarismo econômico do cassino financeiro, ou, numa imagem literária, o capitalismo em sua fase barroca, terminal, por isso mesmo, sua fase mais violenta.

Além do clima, Aprender a rezar na era da técnica dialoga com O homem sem qualidades também na estruturação dos capítulos. Os índices dos dois romances são, a meu ver, uma narrativa à parte. No livro do português, os capítulos têm títulos como O adolescente Lenz conhece a crueldade; Por favor, retire-se, esta sala não é para si; O que se pode descobrir pelo canto do olho; O número de pessoas que te reconhecem quando atravessas a rua; Não olhes duas vezes para uma coisa perigosa; Nem sempre um surdo-mudo é amável e por aí vai. São uma referência clara aos capítulos do austríaco: Continua o passeio pela Schwedenschanze. Moral do próximo passo; Ulrich retorna e o general o informa de tudo o que perdeu; Reencontro com o diplomático marido de Diotina; Mesmo através da cultura física é difícil dominar a mentalidade civil. Os títulos revelam um nonsense que vai da ironia ao cinismo, da piada ao sarcasmo, como na introdução de Musil, “da qual singularmente nada se depreende”.

Epílogo
Em Roberto Bolaño, o mal-estar é o ponto de partida, principalmente o mal-estar da literatura do final de século que se encontrava em um beco sem saída completamente carente de alternativas narrativas. Com muito bom humor, numa plataforma de otimismo, Bolaño transforma poetas e escritores em investigadores (o título de sua obra-prima é Os detetives selvagens, programa e testamento da literatura contemporânea) como se o autor caracterizasse os criadores literários como os protagonistas deste romance policial cheio de culpados que é o mundo contemporâneo e, por conseqüência, a literatura como forma privilegiada de conhecimento do mundo. Em 2008, a Companhia das Letras lançou dois livros do autor chileno, Putas assassinas e, mais recentemente, Amuleto.

Os senhores de Tavares e os detetives selvagens de Bolaño apontam rumos para a literatura do ainda inominável século XXI. Como escreveu Musil em seu livro: “Naquele momento começava uma nova era (pois elas começam a todo o instante!), e uma nova era pedia um novo estilo”.

Referências
Gonçalo M. Tavares. Aprender a rezar na era da técnica. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Roberto Bolaño. Os detetives selvagens. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Robert Musil. O homem sem qualidades. Tradução de Lya Luft e Carlos Abbenseth. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

Sigmund Freud. O mal-estar na civilização. Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 2002.

Eric J. Hobsbawn. A Era dos Extremos. O breve século XX: 1914-1991. Tradução de Marcos Santa Rita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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