sexta-feira, 5 de junho de 2009


Por Marcelo Ariel

1) Você trabalha em uma espécie de fronteira entre a poesia e as artes-visuais, você acredita na existência dessa fronteira?
Não sei se "poesia" é o termo correto. Sem dúvida, minha produção textual acompanha minha produção visual, e vice-versa, mas esse texto adquire formas diversas: ora é um texto poético (sem necessariamente ser poesia), ora é um texto reflexivo, ou mesmo acadêmico. O texto me ajuda a compreender algumas questões da produção visual, que por sua vez gera - e às vezes incorpora - textos. Sem sombra de dúvidas, a fronteira existe e é até bem delimitada pela história e pelo corpo teórico de cada uma dessas áreas. Até mesmo os seus desdobramentos ao longo da história são muito distintos, com alguns cruzamentos entre si em determinados momentos. Mas isso não impede que na prática exista um trânsito profícuo entre artes visuais e escrita (seja ela poesia ou não): tal fronteira pode ser permeável, penetrável, flexível (os concretos e neoconcretos mostraram que é possível), sobretudo se estivermos falando de arte contemporânea. Talvez as práticas artísticas hoje aconteçam principalmente na fronteira, ou seja, naquele lugar em que as especificidades de diversos campos do conhecimento se contaminam e tornam-se menos pragmáticas. A poesia e as artes visuais são campos específicos com corpo teórico definido, e isso precisa e deve ser respeitado (e estudado). Isso não quer dizer que essas especificidades não possam ser confrontadas, desafiadas, transgredidas, hibridizadas, pois em se tratando de arte, não existem regras definitivas: é preciso experimentar, subverter, resignificar, exercitar... a criação precisa alçar vôo... e quando voamos as fronteiras somem, o plano de visão se altera, é panorâmico, vemos tudo de outro ponto de vista. É assim com o fazer artístico: não posso ver a fronteira como um muro à minha frente, mas posso vê-la de cima, como um desenho que configura diversos planos, planos vivos e transitáveis... é preciso apenas voar.

2) Fale um pouco sobre a série inspirada em Brasília?
Em 2003 saí da minha cidade natal (Curitiba) para morar na Capital Federal. Essa mudança representa um marco em diversos segmentos da minha vida: profissional, afetivo e artístico. A série de gravuras Brasília Gravada nasceu, num primeiro momento, devido ao impacto que sofri pela vivência da conformação visual e espacial do Plano Piloto. Num segundo momento, a história da construção da cidade e a poesia de Nicolas Behr contribuiram para o fortalecimento dessa pesquisa gráfica. Durante a criação das gravuras, transitei entre arquitetura, urbanismo, história e poesia e, em 2006, tal pesquisa artística acabou se transformando no projeta da minha dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual da FAV/UFG, na linha de Poéticas Visuais e Processos de Criação. A série é formada por diversas gravuras criadas a partir de imagens gravadas em pequenas borrachas, as quais são carimbadas repetidamente sobre o papel, numa lógica de horizontalidade, repetição e módulo existente na própria arquitetura do Plano Piloto. As imagens têm origem nos monumentos da cidade e o ato de carimbar é muito significativo, pois remete à morosidade da máquina pública, uma das muitas facetas de Brasília (mas não a única!).

3) Como você vê a situação da arte e do artista no Brasil e no mundo?
Bom, ser artista nunca foi fácil: primeiro porque sobreviver de arte é realmente muito difícil, sobretudo em momentos de crise econômica, ainda mais em países "em desenvolvimento"; segundo porque a figura do artista ainda carrega diversos estigmas, ou seja, ser artista ainda é algo incompreensível para a maioria das pessoas (inclusive para muitos artistas!)... Algumas pessoas ainda têm aquela visão extremamente romântica do artista entregue à sua causa poética e, em contrapartida, outras pessoas acreditam piamente que artista é um título para vagabundos de plantão, para inadequados ao trabalho duro, diário, árduo e rotineiro exigido pelo sistema operante em nossa sociedade (mal sabem eles que a produção artística exige sim muito trabalho duro). Essas são colocações muito pessoais e que estão ligadas diretamente à minha experiência. Acredito que a profissão "artista" é possível, mas para isso é preciso compreender as questões de mercado, de circuito institucional, de gerência de espaços culturais, de políticas para a cultura, tudo isso além da produção artística e de suas questões estéticas, históricas, etc. No meu caso, por exemplo, acabei ingressando na Universidade como professora, mas confesso que ainda sinto um pouco de medo de ser apanhada pelo sistema acadêmico e chegar num ponto em que eu esteja apenas dando aulas e escrevendo artigos superficiais e repetitivos para os mesmos congressos e seminários, ano a ano. Não vou deixar isso acontecer!. Enfim, ser artista hoje envolve muito mais esforços do que a própria produção artística: penso que hoje o artista precisa refletir mais e conhecer melhor a sua profissão. No século XXI um artista precisa saber escrever um projeto, conhecer os editais de fomento à produção cultural em suas diversas instâncias, compreender sua inserção na universidade, precisa ser mais empreendedor e realmente conhecer as possibilidades do seu campo de atuação. Caso contrário, fará jus àquelas duas visões estereotipadas citadas anteriormente: a do romântico ou a do vagabundo... ou as duas coisas. Definitivamente, ser artista não significa viver no mundo da lua... isso é tão óbvio, mas ao mesmo tempo em que muitas pessoas pensam dessa forma, muitos artistas ainda se comportam assim e reforçam o estereótipo. Felizmente temos vários exemplos de artistas que desenvolvem excelentes pesquisas em arte mediadas pela sensibilidade e pelo profissionalismo. É preciso aprender com eles e redefinir horizontes.

4) Qual o papel da internet no seu processo de criação?
A internet é fundamental. Além de apoio para pesquisas, ela é uma ferramenta poderosa de comunicação. E comunicação é algo extremamente importante para o meu processo de criação. Estar em contato com pessoas e muita informação é uma condição para que eu proponha, crie e/ou realize projetos. De certa forma isso é muito contraditório, pois ao mesmo tempo em que sou muito reservada, transito por esse coletivo que muito me alimenta, alimenta a minha criação e os meus desejos de realização. Os blogs são fundamentais, são praticamente como uma espécie de método de trabalho: através deles me vejo, gero memória e me revisito, redescobrindo muitas coisas sobre minhas escolhas. O Diário de Bordo é o mais antigo e o mais importante: nele coloco imagens - na maioria das vezes produzidas por mim (fotografias, desenhos, gravuras, etc) - e recortes do que estou lendo no momento... é um inventário. É uma espécie de espelho. É importante para que eu reconheça meus percursos... é como um "ver de fora", uma oportunidade de me afastar e me observar. Tenho alguns projetos para produção em web-art, mas ainda não me organizei para realizá-los. Eles necessitarão de uma equipe interdisciplinar formada por pessoas que entendam de programação, banco de dados, etc. Certamente tais projetos serão realizados, tudo tem sua hora.


5) Fale um pouco sobre sua formação?
Em 2000 me formei em Artes Plásticas/Licenciatura na Faculdade de Artes do Paraná. Logo depois ingressei numa pós-graduação em Fundamentos do Ensino da Arte, na mesma insituição, momento em que comecei a me interessar pelas questões da Arte Pública, devido aos meus trânsitos pela arquitetura e pelo paisagismo enquanto cursava Agronomia. Nesse período frequentei a Oficina Permanente de Gravura da UFPR, sob a orientação de Dulce Osinski. Em 2003 saí de Curitiba e fui para Brasília, onde frequentei os ateliês de gravura da UnB e do Espaço Cultural 508 Sul. Neste periodo estive em contato com muita gente legal das artes visuais e da poesia, descobri os saraus de Brasília e das Satélites, fiz bons amigos. Em 2006 mudei para Goiânia, pois ingressei no Mestrado em Cultura Visual - FAV/UFG, na linha de pesquisa Poéticas Visuais e Processos de Criação, com o trabalho Brasília Gravada. Hoje continuo em Goiânia, dou aulas na Faculdade de Artes Visuais da UFG e continuo meus projetos de pesquisa no campo das artes visuais: certamente passo por um momento de muitas descobertas, conquistas e aprendizado. Ultimamente tenho tentado fazer uma síntese dos caminhos percorridos nesses últimos 6 anos para, a partir daí, esboçar meu projeto de doutorado.

6) Você tem algum livro pronto ou em andamento e como você analisa aquestão da divulgação do seu trabalho?
Minha dissertação de mestrado, Brasília Gravada, foi recentemente aprovada para publicação pela editora da UFG e deve sair no final de 2009. Fora isso, tenho muitos projetos iniciados, os quais imagino que vão se concretizar daqui a alguns anos. Muitos deles precisam de tempo de amadurecimento. Eu funciono assim: abro frentes de trabalho, vou resolvendo prioridades, alguns projetos muitas vezes demoram anos para sair da gaveta... mas quando saem, saem melhores do que planejei inicialmente... outros talvez vivam apenas nas gavetas... o tempo vai dizer. Com relação à divulgação do meu trabalho, a minha estratégia é fazer tudo de forma relacionada: todas as ações que desenvolvo, apesar de serem ações individuais, estão ligadas numa rede de relações, numa rede de grupos de pessoas. Prezo muito a força adquirida pela união das pessoas. Tais relações fortalecem a proliferação dos produtos das minhas ações individuais e coletivas, o que acaba gerando um grande corpo representante do meu/nosso trabalho contínuo, incessante, individual e conjunto. Tenho certeza que o distanciamento no tempo me revelará mais claramente este meu método de trabalho... por hora uso muito a intuição e dou o maior valor para a sintonia: aprendi a não insistir em projetos que parecem estar engasgados, de má-vontade, aprendi a soltar as rédeas e tem dado muito certo! O único cuidado que tomo é o de amarrar as pontas e jogar os resultados provisórios de minhas pesquisas em algum lugar da rede, gerando sempre comunicação, contato, feedback, amizades, memória. Essa é uma forma de sedimentar meu percurso e tenho clareza de que o passar do tempo é algo favorável quando construímos um caminho sem aquela pressa de obtenção de resultados imediatos. Eu respeito o tempo do meu trabalho.

7) O que significa para você ser artista em um país que vive em um abismo educacional-cultural, com milhões de analfabetos, inclusivemilhões de analfabetos funcionais?
Significa que temos muito o que fazer enquanto artistas! Ser artista hoje está longe daquela imagem pequeno-burguesa do artista genial, excêntrico, que num lampejo criativo e com um quê de amargura cria "obras de arte" para um público abonado. O artista tem modos particulares de operar na coletividade, tem todo um campo teórico-prático-conceitual para embasar suas ações, as quais podem gerar reflexão, despertar sensibilidades, transformar olhares... afinal, a produção de um artista pressupõe um público. Isso não é uma forma de alfabetização? Afinal, temos muitos analfabetos da sensibilidade, da percepção, da capacidade de estabelecer relações. O artista pode ser também um agente transformador... ele não está isento dessa responsabilidade.

8) Na sua vida, o que foi definitivo para que você optasse pela arte?
Sempre gostei de desenhar... conjuntos de lápis de cor e canetinhas sempre encheram meus olhos, desde criança. Minha mãe, talvez até sem saber, sempre incentivou muito esse lado da criação. Mas como não poderia deixar de ser, optar por estudar arte e assumir uma formação superior nessa área não foi assim tão fácil. Enfrentei a resistência da família e meu pai tinha lá suas razões: ser artista? Como eu iria sobreviver? Hoje, ao observar alguns de meus alunos, percebo esse grande ponto de interrogação pairando sobre suas cabeças, pois ninguém nos diz como vamos sobreviver. Apenas seguimos aprendendo, estudando, produzindo sem saber muito bem o que vai acontecer ou o que faremos de fato com aquilo. Eu estudei num bom colégio, depois fiz o técnico em Edificações no CEFET, meus pais estavam crentes de que eu seria arquiteta ou engenheira. Então descobri a Faculdade de Artes e, com ela, um outro universo: o da filosofia, do ensino de artes, da sensibilidade, da produção visual. Apesar de tudo ter se encaminhando aparentemente de maneira natural, diversas vezes tive que ter coragem para fazer difíceis escolhas, sempre entre algo mais aceito pela família e algo que parecia ser uma loucura... quase sempre optei pelo caminho da aparente loucura. Assumir, perante o meu pai, a desistência de 5 anos cursados de Agronomia numa boa universidade federal foi, sem sombra de dúvidas, o ponto sem volta: eu já estava formada em Artes e iniciava uma pós-graduação em Fundamentos do Ensino da Arte... Esta foi a decisão que definiu minha escolha definitiva pelas artes. E, apesar das incertezas, tem sido muito gratificante.
Manoela Afonso é graduada em Educação Artística com Habilitação em Artes Plásticas pela Faculdade de Artes do Paraná (2000) e pós-graduada em Fundamentos do Ensino da Arte pela mesma instituição (2003). Mestre em Cultura Visual pela Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (2008) com projeto na linha de pesquisa Poéticas Visuais e Processos de Criação. Professora Assistente da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás - área de concentração: desenho. Coordenadora pedagógica do Polo Arte na Escola - Goiás. Professora formadora das disciplinas Ateliê de Linguagens Bidimensionais: desenho e pintura e Ateliê de Gravura - UAB/UFG/FAV. Professora autora das disciplinas de Ateliê de Gravura UAB/UFG/FAV e UAB/UnB/IdA. Produção artística concentrada na área das artes gráficas, experimentações em vídeo e comunicação na rede (blogs).
Quem quiser conhecer melhor o trabalho da Manoela é só entrar nos sites abaixo:

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