sexta-feira, 16 de julho de 2010

Alessandro Atanes

Publiquei no início de 2008 no PortoGente o artigo abaixo, propondo uma nova leitura do poema
Fugindo ao cativeiro, de Vicente de Carvalho, chamando a atenção para seu aspecto cinematográfico. O motivo da republicação é a recente discussão iniciada por Flávio Viegas Amoreira, deste blog, em favor do tombamento do casarão onde morreu o poeta. Proponho que a discussão se ramifique também para chamar a atenção de que precisamos de novas edições de seus livros. No ano passado passamos em branco pelo centenário de Poemas e canções, sua obra mais importante, que tem ainda um prefácio de Euclides da Cunha. Só com seus livros de volta às livrarias e às estantes é que Vicente de Carvalho voltará a ser lido, discutido e lembrado.

Horas mortas. Inverno. Em plena mata. Em plena Serra do Mar.

A frase acima, de marcação cortante, se parece com as indicações de cenas de um roteiro cinematográfico. Mas na verdade, é o verso inicial de Fugindo ao cativeiro, poema já centenário de Vicente de Carvalho, incluído no volume Poemas e Canções (1908).

Fugindo ao cativeiro, como o próprio nome entrega, relata uma fuga de escravos. Eles descem a serra com o objetivo de alcançar o quilombo do Jabaquara, em Santos, considerado por muitos pesquisadores um dos maiores que o Brasil já teve, ainda que de curta duração.

Foto de J.Marques Pereira de 1900 mostra casebres remanescentes do Quilombo do Jabaquara, criado em 1882

E a narrativa do poema é mesmo cinematográfica. Dividido em quatro partes, ele começa com um plano geral apresentando o cenário. As imagens da serra são como tomadas aéreas (“amplidões do horizonte”, “cordilheira”, “o chão corre às soltas”). É só na 28ª linha que começamos a perceber a presença humana entre moitas, cipós, e troncos.

E em cada árvore altiva, e em cada humilde arbusto,
Há contorções de raiva ou frêmitos de susto.

A partir daí, o poeta muda a escala de observação. De majestosa, a vegetação passa a obstáculo para o avanço do grupo:

- Uma vegetação turbulenta e bravia
Rasteja, alastra, fura, enrosca-se, porfia:
Moitas de craguatás agressivos; rasteiras
Tapoeirabas tramando o chão todo; touceiras
De brejaúva, em riste as flechas ouriçadas
De espinhos; e por tudo, e em tudo emaranhadas,
As trepadeiras, em redouças balançando
Hastes vergadas, galho a galho acorrentando...

De ruídos e dificuldades continua o avanço. Só mais à frente é que o poeta nos apresenta seus personagens, já para lá da linha 60:

São cativos fugindo ao cativeiro. O bando
É numeroso. Vêm de longe, no atropelo
Da fuga perseguida e cansada. Hesitando,
Em recuos de susto e avançadas afoitas,
Rompendo o mato e a noite, investindo as ladeiras,
Improvisam o rumo ao acaso das moitas.

Na segunda parte, meio caminho andado, o poeta aproxima ainda mais a sua lente e, do plano geral do bando em fuga, corta para o close que nos mostra a mãe que perde o filho, fraco, que não resiste ao frio da serra e ao esforço de sua ultrapassagem.

Vai-lhe morrer, morrer nos próprios braços,
Morrer de fome, o filho bem-querido;
E ela, arrastando para longe os passos,
O amado corpo deixará, perdido
Para os seus beijos, para os seus abraços...

O episódio cria a tensão necessária para a valorização da esperança, logo a seguir, na terceira parte, quando, amanhecendo, os olhos dos escravos reconhecem a planície litorânea, “clara, risonha, aberta, verdejante”, num verdadeiro contraste com o desconforto da selva. A partir daí, começa a “íngreme descida” pela “floresta espessa”. Mas descem rindo, felizes, sem lembrar que:

Fica um pouco de trapo em cada espinho
E uma gota de sangue em cada trapo

Indícios que, desde o início da fuga, são o bastante para atrair os capatazes e seus cães. A aproximação da “soldadesca" é dramática:

Foge... Rompendo o mato e rolando a montanha,
Foge... E, moitas adentro e barrocais afora,
Arrasta-se, tropeça, esbarra, se emaranha,
Arqueja, hesita, afrouxa, e desanima, e chora...

Até que um dos fugitivos, no clímax, entrega a vida com o objetivo de retardar o encalço. A batalha é violenta:

Erguendo o braço, ele ergue a foice: a foice volta.
E rola sobre a terra uma cabeça solta.
Sobre ele vem cruzar-se o gume das espadas...
“Ah, prendê-lo, jamais!” respondem as foiçadas
Turbilhonando no ar, e ferindo, e matando.

De lado a lado o sangue espirra a jorros... Ele,
Ágil, possante, ousado, heróico, formidando,
Faz frente: um contra dez, defende-se e repele

E não se entrega, e não recua, e não fraqueja.
Tudo nele, alma e corpos ajustados, peleja:
O braço luta, o olhar ameaça e desafia,
A coragem resiste, a agilidade vence.

E, coriscando no ar, a foice rodopia.

Não é uma luta digna de ser filmada? E assim ela continua até que o guerreiro, um homem, não um escravo, caia com um tiro de arma de fogo. Sua resistência é suficiente para que o resto do grupo, inclusive aquela mãe que perdeu o filho, chegue “na abençoada terra / onde não há cativos”.

Pós escrito
A cena da luta não parece concebida pelo Tarantino?

Referência:
Vicente de Carvalho. Fugindo ao cativeiro. In: Melhores poemas. Seleção de Cláudio Murilo Leal. São Paulo: Global, 2005.


0 comentários:

Postar um comentário

Os comentários ao blog serão publicados desde que sejam assinados e não tenham conteúdo ofensivo.