terça-feira, 26 de outubro de 2010



Chiu Yi Chih


Professor de filosofia,
escritor, performer e
mestre em Filosofia Antiga
pela USP


            Quando o poeta utiliza a palavra “rosa” num poema, ele não se refere necessariamente ao objeto conhecido por esse nome. A rosa do poema nunca é a rosa-objeto ou a rosa com as suas propriedades físico-quimícas. Cézanne não almejava retratar o objeto-árvore, mas aquilo que a tornava um ser-árvore. A árvore de Cézanne nunca será a árvore do jardim botânico. O pintor queria capturar o movimento interno, a forma abstrata e invisível, ou se quiser, a forma em gestação de uma criatura que dificilmente se revelaria na sua superfície externa.
            Em certa medida, um artista verdadeiro nunca reproduz algo já feito pela natureza. Ele trabalha criando uma obra nova; ao invés de retratar um objeto existente, ele ousa criar um ser, um objeto inexistente. Daí o fato de haver uma distância irredutível entre um quadro pintado e um objeto da natureza. As palavras do poema, as cores de um quadro são dotadas de uma coloração invisível. Não podemos supor um poema ou um quadro como “cópias” da realidade, imitações artísticas pretendendo representar o seu conteúdo. Ainda que a obra de arte mantenha uma relação com um determinado referente, ela não está ali diante de nossos olhos com a função de representar ou de descrever aquele suposto objeto. No campo da arte, não é relevante discutir o grau de representatividade que uma obra poderá alcançar a partir de sua remissão referencial.
Um poeta não nos mostraria simplesmente a paisagem que ele viu na infância. Caso o fizesse, seria um mau artista. É inegável que um bom poema poderá nos suscitar certas lembranças, mas essa não será a sua finalidade. A linguagem da arte nunca é  “demonstrativa” no sentido de ser um silogismo de caráter lógico. Um poema como Terra Devastada de T.S.Eliot não demonstra, não prova, não conclui. Não poderá jamais ser tratado como uma proposição lógica. Além disso, uma obra de arte não poderá ser condicionada à sua função comunicativa. A razão é que um artista é um criador, alguém que fabrica máquinas. E essas máquinas de linguagem produzem sentidos. Kafka escreve e a sua literatura é uma máquina-de-guerra, uma imensa artilharia contra o poder, contra a opressão do sistema social. A obra contemporânea de um escultor é uma máquina que funciona, um aparelho em funcionamento. O que importa é a efetividade da obra, e não a sua “objetividade”. Compreende-se assim uma nova objetualidade, um novo modo de ser-objeto. Dessa forma, a obra se torna um universo de afectos e perceptos para usar a expressão de Gilles Deleuze, um agenciamento existencial que permite novas subjetivações.
            É provável que isso se dê em razão do próprio campo de virtualidades e potências que um determinado objeto artístico poderia vir a assumir no fenômeno da sua corporificação. A noção de objeto aqui empregada é suficientemente ampla abarcando desde ruídos abstratos, riscos no desenho, letras, um pedaço de mármore, uma massa de argila, um feixe de luz, vapores, memórias recompostas, imagens em movimento ou uma série de pensamentos delineados. Ou uma mistura de todos esses materiais. Tudo poderá ser “arte” dependendo da forma como o artista fabrica decompondo e recompondo os elementos de sua criação. O problema fundamental consiste em saber em que “plano de imanência conceitual” um escultor, por exemplo, mobiliza a sua filosofia, pondo em jogo crítico os volumes, a matéria em si e as suas dimensões espaço-temporais.
Em primeiro lugar, um escultor organiza materiais, delimita um plano, ensaia a sua temporalidade de raízes cúbicas. Em segundo lugar, ele lança as figuras, projeta espaços, vetores, conceitos; nesse processo, dinamiza variações, destila “virtualidades”. Em terceiro lugar, constrói uma máquina, um novo modo de ser-objeto. E, por fim, performatiza o seu devir-máquina, coloca-o em funcionamento. A sua criação é, como pensava Merleau-Ponty na Fenomenologia da Percepção, um projeto de ancoragem no mundo. Uma montagem corporal que se projeta efetivamente no campo da existência. Não é apenas a mente do escultor que esculpe, mas o seu corpo inteiro. Em particular, a sua consciência é corpo, ser-no-mundo, um corpo que se efetiva lançando-se às contingências mundanas. Essa criatura que o escultor realizou não é senão um monstro corporificado, fluxo imanente que excede os limites, transcendendo-se a si mesmo nas suas infinitas possibilidades. E a transcendência, nesse movimento, não é a busca de um céu situado no além, mas a concretização dos seres possíveis de seu universo conceitual/existencial.
            Um pintor torna visíveis as forças invisíveis. Um músico torna audíveis as forças inaudíveis. As obras de arte são “estruturas” autônomas e presentificadoras. A imagem fala por si mesma num poema (Octavio Paz). Se nele encontramos algum sentido, trata-se de um “infra-sentido” (Deleuze) ou de um sentido que desliza pelas camadas do texto (Barthes).
            É por este motivo que entendemos que o artista é construtor de signos. Ele não se preocupa em informar ou comunicar uma mensagem, mas sim em criar sentidos. É, antes de tudo, um xamã que evoca espíritos, um boxeador que ilude, persuade e “seduz” a plateia. Um construtor que projeta, escolhe, seleciona os elementos de sua obra. Nisso convergem a percepção, a sensibilidade e a construção seletiva. O artista, nesse processo de escolha, dispõe as palavras, os sons, as cores, os movimentos numa determinada estrutura, seja qual for o material que utilize. Desse modo, sucede – como bem percebeu o linguista russo Roman Jakobson – a projeção do eixo paradigmático sobre o eixo sintagmático na escolha dos seus materiais e na configuração dos mesmos. O eixo paradigmático é o plano das associações das ideias, imagens e significados. É o plano dos paradigmas, dos paralelismos semânticos. O eixo sintagmático é o plano onde as possíveis associações se costuram e se concatenam por meio de contiguidades estruturais. Ao fazer a sua obra, o artista projeta um conjunto de virtualidades paradigmáticas sobre o esquema sintagmático. Em outras palavras, ele projeta um vasto campo de significados culturais/simbólicos na sintaxe de suas formas.
            Nesse aspecto, um poeta pode recriar sentidos associando palavras que se conjugam no campo das sonoridades. Certas relações sonoras – aliterações, assonâncias, repetições – desenvolverão possíveis cadeias de palavras, possíveis sintagmas. É como um jogo de combinações, um lance de operações cirúrgicas no seio das analogias. Surgem assim associações de ideias e acasos. O artista improvisa no seu tablado. Através da desconstrução e reconstrução, ele dá forma ao desconhecido.
Demiurgo desses labirintos, o artista é inventor. Cava um buraco na linguagem, desencadeia uma explosão semântica. Não são as palavras em si mesmas que compõem o sentido, mas as suas conotações evocadas, as suas lacunas ecoando um novo desdobramento. Nessa amplitude, a máquina da linguagem convoca uma nova operação. Embora não seja utilizada em seu funcionamento convencional, nem por isso esta máquina será anti-comunicativa. O público certamente irá ser “fisgado” por ela. É que o artista opera, costura, anarquiza, estende a malha da linguagem à enésima potência no sentido da expressividade e da literariedade. Isso quer dizer que há uma profunda reestruturação da máquina pelas mãos do seu operário. E o público ouvirá o ranger dessa maquinaria.
Ainda que não haja a representação de um conteúdo, perpassa na obra um sentido inaudível, latente, silencioso. É nesse sentido que se revela irredutível a escultura Praça da Lagoa. Não foi por acaso que a peça levou o Prêmio de segundo lugar no 27o Salão de Artes Plásticas do Embu das Artes (categoria escultura). A cabeça do peixe – alusão ao reino marinho – compõe uma parte dela. É a única parte figurativa. O restante é um devir catastrófico construído a partir de cacos de vidro quebrado, blocos de mármore, engrenagens de ferro, tendo no seu centro estilhaçado uma luminária de luz verde.
Por meio da emanação dessa luz, respiramos a metafísica do espaço. Mas essa metafísica não é idealista: ela emerge das catacumbas, das ruínas e do grotesco. A luz sai do viscoso. A leveza convive com a densidade. O pesadelo invade as arestas do sublime. Absorvemos o pathos, que não é um mero sentimento emotivo, mas uma dor metafísica. A dor de uma “lagoa” aterrada, esmagada e extirpada. Há algo do Nascimento da Tragédia de Nietzsche. Irael faz alusão a um fato recente da história do Embu das Artes: o aterramento da lagoa. Toda peça é sublime, metafísica, e ao mesmo tempo, violenta, cruel. A civilização com a sua luz verde monumental aterra toda vida orgânica, arranca a carne da natureza. Esta última, escancarada, dilata-se entre objetos corroídos, no meio das cacofonias da própria materialidade. Não há como ficarmos indiferentes, impassíveis em relação à dimensão apocalíptica desse acontecimento.  
Tudo se dissolve e se escancara. As vísceras. O coração. As cicatrizes da História e da Natureza. É como se, após o aterramento da Praça da Lagoa, só nos restasse percebê-la em partes, algumas quase indiscerníveis. Vemos um corpo caosmótico no qual se presenciam vários elementos contrastantes. Lembra-nos a pintura surrealista de Max Ernst, as assemblages dos novos realistas (César, Arman). A associação de uma máquina de costura com um guarda-chuva do maldito Lautréamont. Só que repleto de leituras e releituras contemporâneas. Detectamos os vestígios do que sobrou, os restos degradados que mal se encaixam. Quando estes se juntam, formam somente um ser deformado. A sensação é de aniquilamento. Não nos caberia nesse momento encontrar uma adequação entre o objeto escultórico e o seu conteúdo representativo. Ao contrário, longe de ser um problema de “adequação” ou de “representação”, o escultor está propondo outro jogo.       
Um material se entranha no outro. Uma dança elementar se esboça. Coincidentia oppositorum – fusão dos opostos. Experiência mística. Metafísica concreta onde são construídos oxímoros, onde se fundem elementos de realidades distintas (Pierre Reverdy): luz-trevas, sangue-anjo, água-fogo, natureza-história. Na Praça da Lagoa, por exemplo, a luz verde artificial e o elemento natural do barro se fundem numa estranha combinatória, como se entrecruzassem forças oriundas de diferentes níveis da matéria. Corporeidade constelada, composta por várias camadas. Nesse feixe de multiplicidades, vislumbram-se vários corpos: mineral, aquático, terroso, marmóreo, granulado, ferruginoso, translúcido, luminoso. Uma variação de atributos e modos expressivos, cada qual exprimindo uma possível materialização. Águas convulsivas. Fibras luminosas. Condensação nevrálgica de pontos e clivagens. Nessa dança matérica que também é uma experiência terrível, Praça da Lagoa é um naufrágio, um destroço subterrâneo que junto com os materiais mais abjetos cria “ambiente”. Um teatro da crueldade para lembrar de Antonin Artaud. Alquimia-acumulação. Sol e Morte transfundidos.  

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