quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

O poeta Marcelo Ariel compartilhou no Facebook na semana passada uma resposta do escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003) durante entrevista sobre a qual a postagem nada informa. Ali, na entrevista desconhecida, ele teria dito que uma coisa que o aborrecia era “o discurso vazio da esquerda”, pois “o discurso vazio da direita já é de se esperar”.

Seus textos, em comentário que fiz à postagem de Ariel, oferecem rica matéria-prima para a renovação do discurso político latinoamericano. Seus livros lidos à contrapelo nos levam ao abismo político de nosso continente e nos convidam ao salto. Não sei se Ariel leu em algum lugar, ou se alguém escolheu de epígrafe e acabou nos aplicativos de perguntas da mesma rede, ou ainda se as procuras automáticas colocaram a frase lá por alguma desrazão.

Mas é daí, do penhasco dessa sem razão, que parte – salta – esta série de pequenos ensaios sobre história e literatura na América Latina. Não sei quantos serão ao final, ou se alguma leitura interromperá o ciclo, mas acho que vai ser divertido (para mim). Creio que os objetivos e os eixos irão se formando enquanto puder, caso a caso, texto a texto, tecer algumas interpretações sobre a vastidão de conhecimento humano que apenas (talvez exagere) a literatura e a arte têm hoje capacidade de reter.

I
Mas eu queria fazer disso um caminho interessante para o leitor (divertido não, que não sou humorista e nem quero ajudar com gracinhas). Então escolhi uma revelação interessantíssima de Roberto Bolaño: ele queria ser Pepe, o “Canhão da Vila”, ponta-esquerda do Santos e da seleção campeão do Mundo em 1958. Em 1962 Bolaño é um menino chileno de nove anos que acompanha em seu país natal a conquista do bi pelo Brasil. Olha como ele descreve aquele tempo: “Meu número era o 11, o número de Pepe e Zagalo no mundial da Suécia”.

Mas o Bolaño futebolista chutava com a esquerda e o Bolaño escritor (fazer lição de casa é escrever) usava a mão direita. Demorou para diferenciar uma direção da outra. (Será que este parágrafo pode ser entendido ideologicamente?).

Ao mesmo tempo – e aí voltamos à identidade latinoamericana – Bolaño percebeu que sua dislexia ia adiante: achava que Bogotá fosse a capital da Venezuela (bê com ubê da fala hispânica) e Caracas da Colômbia (cê com cê) simplesmente pela lógica “verbal ou das letras”.

Dessa “dislexia”, sempre com aspas para mim, abre-se espaço para um método de observação diverso, disléxico, como o autor contou em seu discurso de recebimento do prêmio Rômulo Gallegos:


A essa altura do discurso pressinto que o senhor Rômulo Gallegos deve estar se revirando no túmulo. Para quem deram meu prêmio, estará pensando. Peço perdão ao senhor. Mas é que inclusive dona Bárbara, com b, soa a Venezuela e Bogotá, e Bolívar também soa a Venezuela e dona Bárbara, Bolívar e Bárbara, que belo par teriam feito, ainda que os outros dois grandes romances do senhor, Cantaclaro e Canaina, poderiam perfeitamente ser colombianos, o que me leva a pensar que talvez sejam, e que sob minha dislexia talvez se esconda um método, um método semiótico bastardo ou grafológico ou metassintático ou fonemático ou simplesmente um método poético, e que de verdade, de verdade, Caracas seja a capital da Colômbia assim como Bogotá seja a capital da Venezuela, da mesma forma que Bolívar, que era venezuelano, morre na Colômbia, que também é Venezuela e México e Chile.   

Talvez resida aí um pathos latinoamericano que, inicialmente sob a órbita dos textos de Roberto Bolaño, a série Americanidades irá explorar.

Epílogo
O discurso de Bolaño foi compilado por Celina Manzoni no livro Roberto Bolaño: a escritura como tauromaquia, de 2006, que reúne resenhas de lançamento, artigos e ensaios sobre a obra do autor chileno. São 20 colaboradores escrevendo sobre ele, principalmente pesquisadores dos países de fala hispânica, mas há também ficcionistas como o catalão Enrique Vila-Matas.

Como documentos literários o volume nos traz uma pequena apresentação de uma página de Bolaño por ele mesmo, um texto dele, também pequeno, sobre Os detetives selvagens, o veredito do juri do prêmio, que antecede o discurso e uma entrevista dada por Bolaño a Carmen Boullosa, poeta e romancista mexicana, após a conquista do prêmio.

Referência:
Roberto Bolaño. Discurso de Caracas (Venezuela)InRoberto Bolaño: a escritura como tauromaquia. Buenos Aires, Argentina: Corregidor, 2006.

Alessandro Atanes, jornalista, é mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Servidor público de Cubatão, atua na assessoria de imprensa da prefeitura do município.

0 comentários:

Postar um comentário

Os comentários ao blog serão publicados desde que sejam assinados e não tenham conteúdo ofensivo.