quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Alessandro Atanes, para o Porto Literário do site PortoGente

No primeiro texto da série Americanidades (Parte I), abordei o discurso de Roberto Bolaño ao ter recebido o prêmio Rômulo Gallegos. Ali, o autor chileno que morou no México e na Espanha fala, de forma um tanto irônica, de países latino-americanos a partir de uma formação comum que vale a pena repetir:

A essa altura do discurso pressinto que o senhor Rômulo Gallegos deve estar se revirando no túmulo. Para quem deram meu prêmio, estará pensando. Peço perdão ao senhor. Mas é que inclusive dona Bárbara, com b, soa a Venezuela e Bogotá, e Bolívar também soa a Venezuela e dona Bárbara, Bolívar e Bárbara, que belo par teriam feito, ainda que os outros dois grandes romances do senhor, Cantaclaro e Canaina, poderiam perfeitamente ser colombianos, o que me leva a pensar que talvez sejam, e que sob minha dislexia talvez se esconda um método, um método semiótico bastardo ou grafológico ou metassintático ou fonemático ou simplesmente um método poético, e que de verdade, de verdade, Caracas seja a capital da Colômbia assim como Bogotá seja a capital da Venezuela, da mesma forma que Bolívar, que era venezuelano, morre na Colômbia, que também é Venezuela e México e Chile.

Essa Colômbia que também é Venezuela, ou México ou Chile (o Brasil também está no discurso) aponta para o termo ubiqüidade, condição de estar em toda a parte todo o tempo, uma das principais categorias de interpretação utilizadas pelo estudioso argentino Néstor García Canclini em seu livro Culturas Híbridas, de 1997. Em sua pesquisa, ela pergunta quais seriam naquele momento os caminhos para “gerar” uma arte latino-americana. E enumera alguns: “reelaborar com uma visão geométrica, construtiva, expressionista, multimídia, paródica, nossas origens e nosso presente híbrido”. Esse trabalho seria feito por “artistas liminares, que vivem no milite ou na intersecção de várias tendências”, isto é, “artistas da ubiqüidade”.


ubiquidade II, manipulação digital publicada em mnemosyne

Apesar de ter morrido em 2003, aos 50 anos, acredito que Bolaño seja o autor latino-americano que mais tenha encarnado a ubiquidade, não só pela própria mobilidade do autor (Chile, México, Espanha), de suas palavras (“Colômbia, que também é Venezuela e México e Chile”) e dos vários registros que compõem sua escritura, das citações mais eruditas à linguagem das ruas da capital do México e dos subempregos em cidades da Europa (por exemplo: o desafio de expressões entre o poeta erudito García Madero, a prostituta Lupe e os protagonistas de Os detetives selvagens).

Qualquer passada de olhos em qualquer livro de Bolaño é suficiente para encontrar personagens e situações de ubiqüidade. Em Estrella distante, publicado pela primeira vez na Espanha em 1996, quase junto a Culturas Híbridas, encontramos algumas “ubiqüidades” latino-americanas. O primeiro exemplo é o do personagem Juan Stein, poeta que acaba envolvido em revoluções na África e na América Central entre os anos 70 e 80. As palavras são do narrador do livro, a tradução é minha: 

O recorte [de jornal] fazia alusão a vários “terroristas chilenos” que haviam entrado na Nicarágua pela Costa Rica com as tropas da Frente Sandinista. Um deles era Juan Stein.
A partir desse momento as notícias sobre Stein não escassearam. Aparecia e desaparecia como um fantasma em todos os lugares onde os latino-americanos, desesperados, generosos, enlouquecidos, valentes, aborrecíveis, destruíam e reconstruíam e voltavam a construir a realidade em um intenso último avanço ao fracasso.

Ou outro, quando o narrador fala da visita que fez à casa de Stein:

Muitas vezes fomos à sua casa, eu e Bibiano, uma casinha pequena perto da Estância que Stein arrendava desde seus tempos de estudante na Universidade de Concepción e que, já como professor na mesma universidade, ainda conservava. A casa, mais do que livros, estava cheia de mapas. Essa foi a primeira coisa que chamou a atenção minha e de Bibiano, encontrar tão poucos livros (…) e tantos mapas. Mapas do Chile, da Argentina, do Peru, mapas da Cordilheira dos Andes, um mapa de estradas da América Central que nunca voltei a ver, editado por uma igreja protestante norte-americana, mapas da Conquista do México, mapas da Revolução Mexicana, mapas da França, da Espanha, da Alemanha, da Itália, um mapa de ferrovias inglesas e um mapa das viagens de trem na literatura inglesa, mapas da Grécia e do Egito, de Israel e do Oriente Médio, da cidade de Jerusalém antiga e moderna, da Índia e do Paquistão, da Birmânia, do Comboja, um mapa das montanhas e rios da China e um dos templos xintoístas do Japão, um mapa do deserto australiano e um da Micronésia, um mapa da Ilha de Páscoa e um mapa da cidade de Puerto Montt, no sul do Chile.

Mas a ubiqüidade de Bolaño não está apenas na diversidade de lugares e deslocamentos em sua obra. Retrato de uma geração derrotada (os jovens que sucumbiram frente às ditaduras latino-americanas), seus relatos apontam para a ubiqüidade da vítima, isto é, não importa se no Chile ou Brasil, na Argentina. A obra de Bolaño é a história deste fracasso.

O bom disso é que ela não é feita de lamentações e não fica lambendo suas próprias feridas publicamente como fez a literatura de testemunho (legitimamente) durante a redemocratização. Bolaño vai além, deixa a experiência imediata para trás e, como escrevi na semana, nos leva à beira do abismo da História e nos convida ao salto. Fecho com o que o narrador diz de um personagem, que poderia ser qualquer um de nós sul-americanos: “… estava na borda do abismo e não sabia ou não se importava ou dissimulava com uma estranha perfeição”.

Referências:
Néstor García Clanclini. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: Edusp, 2000 (1ª edição 1997).

Roberto Bolaño. Estrella distante. Barcelona, Espanha: Anagrama, 2000 (1ª edição 1996, edição em português publicada em 2009).

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