quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Alessandro Atanes, para a coluna Porto Literário do site PortoGente

O bicho tá pegando na área cultural de Santos por causa de problemas no Fundo Municipal de Cultura, mas vou continuar escrevendo sobre literatura. Até porque sou parte interessada: do valor total disponível em edital, só um pouco mais da metade realmente será distribuído entre 17 projetos (a expectativa era em torno de 30). O autor aqui da coluna acabou como primeiro suplente em um universo de redução de recursos, uma Antígona (que pretensão) vitimada pelo Creonte-Estado de fundo pela metade. Tragédia ou comédia?

Oras bolas, como diria Mário Quintana, vou mais é voltar a escrever sobre o escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003) nesta série que comecei sobre Americanidades. A exposição (ainda se pode usar exposição ou devo redigir um termo “divertido”, que as pessoas “entendam”?), bem, a exposição de hoje será uma síntese de uns três ou quatro artigos anteriores em que tratava do próprio Bolaño: seu discurso que escreveu para receber o prêmio Rômulo Gallego e, em outro texto, passagens do romance Estrela Distante (1996, editado em português em 2010); e outro artigo sobre o autor uruguaio Mario Benedetti (1920-2009) e seu romance de testemunho Primavera con una esquina rota (1982, momento de redemocratização no Cone Sul, traduzido no Brasil por Primavera num espelho partido).

I
Relacionar as duas obras me remete a uma preocupação da ensaísta argentina Beatriz Sarlo que venho repetidamente repetindo aqui: a de que a ficção, em relação aos temas sul-americanos, deveria avançar para além do testemunho, isto é, buscar novas perspectivas narrativas e registros literários que não se limitem às memórias em primeira pessoa ou aos relatos dos sobreviventes e daqueles em exílio durante as ditaduras no Chile, Argentina, Uruguai e, lógico, Brasil).

É esse avanço, da memória e da experiência imediata para a fabulação e reflexão (ainda que na forma da ficção) que constatamos ao colocar lado a lado as obras. Não é nunca, insisto nisso, uma questão de gostar mais de um ou o outro ser melhor, mas sim de como a teia ficcional se redesenha ao longo do tempo e da sucessão de livros e leituras.

II
Na ficção de 1982, os protagonistas formam uma família afetada diretamente pelo terror de Estado (ó ele aí de novo): acompanhada pela filha e pelo sogro, mulher está no exílio, enquanto o marido, preso político, está em uma cadeia em Montevidéu. A cada capítulo, ouvimos ou lemos cartas de um dos personagens: o marido lendo uma carta do pai ou escrevendo para a esposa, as conversas entre a esposa e o sogro, as perguntas da menina para mãe, que a chama pelo primeiro nome. Ao final, surge a voz de um amigo do casal, também no exílio. Apesar da diversidade de vozes (e da excelência da escrita), é tudo experiência e relato em torno da intromissão da história em suas vidas.

III
Bolaño, como venho afirmando, nos tira da experiência e nos leva ao abismo. Mas vou refinar essa imagem: o autor chileno é 33 anos mais novo que o uruguaio, isso quer dizer que Bolaño leu Benedetti durante sua formação. E como o que resta às novas gerações, Bolaño deu o próximo passo com sua obra.

Parece que os personagens de seus livros foram concebidos no fundo da cratera que o meteorito do Estado marcou no território da multinação latino-americana. Mas eles não ficaram lá, nas cinzas. A geração anterior lhes deu a certeza de que os heróis. Assim, só resta a eles deixar o fundo e subir pelas paredes da cratera para alcançar a borda. De lá conseguem divisar a extensão do estrago, mas já do lado de fora da cratera, movimento a que é levado o leitor.

No plano concreto, isso se dá, por exemplo, na forma como Bolaño mostra os protagonistas, diametralmente oposta à de Benedetti em seu romance. Ainda que haja primeira pessoa na obra de Bolaño, os protagonistas não falam em livros como Estrela Distante. São os outros que falam dos protagonistas. Isso permite à escrita e à leitura deixar a experiência imediata e ir para a reflexão sobre ela, construindo assim conhecimento sobre o mundo, mesmo que de forma fictícia. No romance acima citado, o narrador não fala de sua vida. Ele é alguém que recebe cartas de um amigo sobre uma investigação em andamento. Sua participação na trama se dá apenas devido à sua condição de poeta, como um consultor na busca por um assassino-artista.

Em Os detetives selvagens, um dos vários pontos altos da obra de Bolaño, nunca ouvimos as vozes dos protagonistas. Sabemos deles pelo diário de um dos integrantes do grupo poético liderado por eles. O diário tem duas partes. Entre elas, um intervalo (na verdade, quase 300 páginas) com ainda dezenas de depoimentos sobre os “detetives”, o que os deixa em uma bruma ao mesmo tempo em que podemos, ao reunir tantos visões sobre os dois, conhecê-los relativamente, mas nada parecido à forma como conhecemos os protagonistas de Primavera con una esquina rota, de quem ficamos quase íntimos.

Epílogo
Talvez o teor da relação entre o livro de Benedetti e o de Bolaño se cristalize pelo uso das indicações de espaço sugeridas pelos títulos dos romances. Uma esquina, ainda que rota, partida, dobrada, é sempre uma referência de proximidade. Já os protagonistas de Bolãno têm o brilho de uma Estrela Distante.

Referências:
Mario Benedetti. Primavera com uma esquina rota. Madri, Espanha: Punto de Lectura, 2008.

Roberto Bolaño. Estrella distante. Barcelona, Espanha: Anagrama, 2000 (1ª edição 1996).

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