sábado, 9 de julho de 2011

Alessandro Atanes, para a coluna Porto Literário do Portogente 

Roland Barthes descreve Marlon Brando em Sindicato dos Ladrões, filme de 1954 dirigido por Elia Kazan, como um estivador “indolente e ligeiramente bruto”. O filme nos apresenta o personagem como um simpatizante dos criminosos que controlam o sindicato dos trabalhadores do porto, resignado com a condição de sujeição à situação.

A crítica de Barthes está no livro Mitologias, série clássica de pequenos textos publicados entre 1954 e 1956 em que disseca os interesses ideológicos mascarados na linguagem da cultura, da imprensa, pela arte e pelo cinema, como no caso de Um operário simpático, sobre o personagem de Brando em Sur le quais, o filme na versão francesa.

O crítico discorda de algumas posições do momento que consideraram o filme “corajoso”, de esquerda, “destinado a mostrar ao público americano o problema do operário”. Pelo contrário, o que faz o estivador agir contra o grupo “fraudulento e abusivo” é justamente ser convencido disso por um padre dispostoa alterar o quadro social do bairro portuário.
Aliás, e o seu próprio final que trai o filme, no momento em que muitos pensaram que Kazan assinalava astuciosamente o seu progressismo: na última sequência, vê-se Brando, num esforço sobre-humano, conseguir apresentar-se ao patrão, que o espera, como um operário consciencioso. Ora, o tal patrão está visivelmente caricaturizado. 
Assim, no filme, quem salva o proletário não é a revolução, mas sim, veja só, o capitalismo: “a cantiga que nos cantam, apesar de todas as caricaturas, é o regresso à ordem”.

A leitura de Barthes cai extraordinariamente bem na versão brasileira do filme, na qual o operário deve se livrar do “sindicado de ladrões” para conquistar a liberdade. Nem imagino o que Barthes escreveria sobre o título brasileiro, mas seria delicioso, decerto. Há outro texto das mitologias que permite uma leitura complementar. É O pobre e o proletário, em que analisa o vagabundo dos filmes de Charles Chaplin em Tempos modernos.

Mas é precisamente porque Carlitos encarna uma espécie de proletariado burro, ainda exterior à Revolução, que a sua força representativa é imensa. Nunca nenhuma obra socialista conseguiu exprimir a condição humilhada do trabalhador com tanta violência e generosidade.
No filme de Kazan, somando os dois textos, Brando passa de pobre resignado aos criminosos a pobre resignado com o patrão, do fogo para a frigideira ideológica.
Pós Escrito
Nada contra a análise ideológica de Barthes, mas há algo na ambientação do espaço portuário que permite outra chave analítica. É o isolamento dos bairros portuários em relação às cidades que os contêm, cuja manifestação transparece na afirmação de que os bairros portuários de qualquer cidade do mundo são mais parecidos entre si do que com outras áreas urbanas próximas.

Isto é bem caracterizado no título original do filme em inglês, On the waterfront, algo como “Na linha d’água” ou “Na Beira-Mar”, sugestão espacial que é mantida na tradução para o francês (“Sobre o cais”). A análise espacial do que ocorre neste microcosmo pode, mais do que se contrapor à análise ideológica de Barthes, oferecer elementos para explicar como funciona a naturalização (o mito) da solução conciliadora.
Em um texto de 2008, escrevi sobre o filme (leia aqui):
É o pertencimento ao porto, e não à cidade, que explica o pacto de silêncio que permite à máfia tomar aquele lugar. E só um aliado interno, no caso o padre da paróquia, que consegue romper a inércia. Outro componente narrativo que estimula a ação vem do campo do melodrama: é o amor do personagem de Marlon Brando pela irmã do amigo que havia morrido. Só nessa situação ele nota que o irmão mafioso a quem sempre protegeu deveria ser arrancado do sindicato.
A partir daí, a história caminha para um desfecho em que a mudança da configuração interna do espaço portuário segue em direção ao clímax e desfecho. Um tipo parecido de isolamento percebemos no enredo do romance Navios Iluminados (Ranulpho Prata, 1937), no qual os personagens mal deixam o bairro portuário do Macuco, saindo dali apenas em ocasiões especiais, como quando o portuário protagonista se desloca à casa de um figurão para pleitear uma vaga na estiva. Nesse romance, assim como no filme, o bairro portuário se configura mais como um apêndice do cais do que uma parte efetiva da cidade.
Referência:
Roland Barthes. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993.

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