terça-feira, 30 de agosto de 2011

Flávio Viegas Amoreira

Ensaio poético do escritor sobre a exposição São Paulo, a gigante em miniatura, do fotógrafo Flávio Meyer, acompanhado por galeria virtual; conheça o trabalho do fotógrafo aqui


Adentrei uma sala inadvertidamente num velho museu do mítico porto santista : uma exposição me pôs em êxtase, era sobre Sampa e foi melhor ter deparado com aquelas fotos num oceano úmido paralelo ao mar da megalópole de ondeantes concretudes. Dava prosseguimento ao meu Sampoema enquanto redescobri um equivalente epifânico ao meu texto sobre a desvairada urbe de meus encantos. Fotogramas miniaturizados a partir de sobrevôos por São Paulo que me puseram desprevenido: maquetes? cidades cenográficas? Não! era o gigante destacado poeticamente de seu prosaísmo esterilizante: só a fotografia a partir de Flávio Meyer me fez refazer o percurso do inefável paulistano com lentes anímicas de aumento.

O Museu do Ipiranga, campos de aviação, estádios, o Copan totem fálico e simbólico da imponência vertiginosa. Recorri a um poema de Drummond de imediato: "Visito os fatos, não te encontro / Onde te ocultas , precária síntese / luz dormindo acesa na varanda / Miúdas certezas... sobe ao ombro para contar-me a cidade dos homens completos. Calo-me, espero, decifro". Quedei reflexivo: a Catedral da Sé reposta em sua monumentalidade diante dum burburinho desacralizado: redescobria a matéria onírica de meu imaginário quântico, meu lirismo desacomodado: Gigante em miniatura me atiçou as pupilas e neurônios amortizados pelo cotidiano de tantas esquinas... Como seguindo roteiro do foto-artista , segue Drummond: "Em vão percorremos volumes, viajamos e nos colorimos".

Meyer perfaz essa volumetria detalhista da espacialidade, exegese aérea do horizonte esbatido na arquitetura esmaecida pelo Tempo e iluminada em meio ao tumulto dos estranhos que divisam mesmos totens compartilhados. O artista faz essa urdidura do skyline com a mirada dum artesão de perspectivas. Alçar a fotografia ao status de arte é desafio permanente entre o que se propõe Arte e a profusão de imagens "bombardeantes" de visualidade; reconheço e identifico-me com obras de Flávio Meyer como quem vê sua literatura reproduzida em fotogramas carregados de signos desdobráveis em infinitude de significados.

Walter Benjamin que foi grande teórico do surgimento do homem moderno apartir do flanêur baudelariano definiu como nenhum outro obra de arte em tempos de reprodutibilidade industrial: "Reconhecemos a obra de arte pelo fato de que nenhuma idéia que ela suscita em nós, nenhum ato que ela nos sugere pode esgotá-la ou concluí-la". É o espanto encantatório imprescindível que tanto enfatiza nosso mestre Niemeyer: dispor num fotograma emocionalidade e intelecção na medida do fantástico tornado possível! Encontrar o fascínio na densificação do visível, reter toda transcendência imagética na radicalidade imanente. "Perceber a aura de uma coisa significa dotá-la da capacidade de olhar", segue Benjamin enfatizando poder demiúrgico do artista de restituir ao homem transmoderno capacidade perdida de olhar: Flávio Meyer desce ao abissal refazendo percurso de quem perfaz pedagogia do olhar: reintroduz a paisagem visível-epifanicamente.

Símbolos de poder e onipresença capitalista, Sampa é humanizada pela supremacia do nano-power de sua mirada liberando fótons-galáxias : ao que teme grandiloqüência da cidade engole-a cyber-ludicamente através dum big-bang cromático , lirismo em tomadas alternando unusitado e familiar estampa mal-percebida pela pressa de quem nem esboça contornos não fosse a câmera em aquarela.  A percepção "aurática" que repete Valéry: "Quando digo: vejo esta coisa, não ponho uma equação entre mim mesmo e a coisa... no sonho, porém, subsiste uma equação. As coisas que eu vejo me vêem como eu as vejo". Nisso está inserido o trabalho de mimetização do onírico em Meyer, o delírio quase táctil, a anulação calculada de distanciamento, o amalgamento com o objeto focado em realce propositalmente içado ao enlevo. Ele flagra o que Benjamin denomina  "a aparição irrepetível de uma distância": lilliputianos, nos tornamos protagonistas cúmplices dessa intimidade com um entorno tornado epidérmicamente envoltório nosso mesmo também espaço! mas no que aproxima, aparta e reflete-se por nós: fractraliza até uma neo-composição neural: esse o lance de dados da sua óptica-ontológica. O relevo busca e gera questionamento do instante desdobrável em rizomas múltiplos.

Foto-sínteses polissêmicas: grão deitando raízes ao nosso empreendimento perceptório: conforme Bachelard o "espaço habitado transcende o espaço geométrico", a qualidade do prisma maximiza técnica e lente; em Flávio Meyer a fotografia desafia dois gigantes: longe e passado, - aproxima e eterniza. Em seu belo ensaio, A coragem de criar, o pensador Rollo May sugere que a observação é mais minuciosa quando o artista está minuciosamente envolvido - , isto é, a razão funciona melhor quando a emoção está presente. Na realidade só podemos ver realmente um objeto se estivermos emocionalmente ligados a ele. Talvez por isso a razão funcione melhor no estado de êxtase. Quando o artista se amalgama, se mimetiza imenso e imerso no que tenciona expressar dessa contaminação lírica. A intimidade com objeto clicado requer coragem. O artista se lança envolvido; não subtrai em relevo, abstraí apartir do cume de signos como eviscerando a cidade cirurgicamente delineada: "coragem perceptiva", destacar realçando profuso apartir do elemento central preciso.

Se como diz Blanchot o poeta é o mestre que se coloca em risco, o fotógrafo é aquele que arrisca sem direito a esboço. Assim leio fotos de Flávio Meyer como quem assiste Antonionni ou poema de René Char ao reverberar a "clareira" de Heidegger: "Se habitamos um clarão, é o coração do eterno": cada uma dessas miradas é um abismo num céu cinzento alumiando o solo prenhe da lucidez embriagada do olhar. Uso título duma obra de Pierre Boulez , "explosão fixa", para recorrer de novo a Rollo May:  "A imaginação é a extrapolação da mente. É capacidade que tem o indivíduo de aceitar o bombardeio do consciente pelas imagens, idéias, impulsos, toda a sorte de fenômenos vindos do pré-consciente". Alta voltagem psicológica sim essas imagens nos suscitam: pensar a megalópole por todos suportes artísticos é imbricar coletivo com tensões do indivíduo despersonalizado na "coisificação" da urbe se "desalmando".

A fotografia de Flávio Meyer contêm a realidade acrescida de poesia, é um modo de reter o Devir instantâneo de um fluxo; ela não congela, ela desdobra o visível apartir da hiper-sondabilidade do remoinho disposto. Amplidão domina pelo detalhe: o que ofusca realça no que sente, pensa. Quando deparo intenção, procedimento e objecutalidade do artesão de horizontes remeto a Leornado Da Vinci: "O peso deseja uma só linha, e a força, infinitas". É na disposição do olhar-câmera ao encontro da disponência desse que esculpe alinhavando aresta no ar que é ocasionada liturgia da Arte como verticalização espraindo em evocação da superfície eloqüente: paisagem.

Ainda nos imortais apontamentos de Leonardo que me inspiro para ilustrar digressões sobre obras de Flávio Meyer: "Todo corpo posto no meio do ar luminoso difunde-se em círculo e enche as partes circunstantes de suas infinitas similitudes , e aparece todo por parte , e todo em cada mínima parte". As similitudes são simetrias variáveis que elaboramos na observação insistente do sombrear e clarificado dum testemunho vivificado por fotograma: o Copan de Meyer foi um transe emotivo particularíssimo como saído de um mítico redescobrir titânico: emocionalidade incontida nesse cadinho específico "sampauleiro". Voltarei reler fotografias de Flávio Meyer como "transbordamentos semânticos" ou, como Deleuze sugere a Goddard: "Um travelling e uma panorâmica não são de modo algum o mesmo espaço (...) por um lado é englobante, por outro é uma linha de universo". Só aos poetas deveria ser legitimado a apreensão das artes visuais, assim confirmo minha ética wildeana: sinto como quem escreve, escrevo já com sensorialidade pensada.

O Verbo aqui veio da imagem que é palavra decalcada nessa panorâmica da objetiva ao interpretante: Flávio Meyer nos oferta o  que estilhaçamos numa miríade de impressões e re-significados. Tem o predicado de quem permanece: é instigante por e através da desordem simétrica das coisas. Naturaliza o efeito e conceitualiza o etéreo-espiralado. Um fotografo que compõem o que estava ainda em estado de irreproduzível.

1 comentários:

  1. Pelos na[vios] de Flá[vios], vimos, vi, vios o âmago do amar, no ar, no mar, há, há. Comunhão feliz!

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