quinta-feira, 15 de setembro de 2011

O poeta, dramaturgo, cineasta e romancista português Antônio Cabrita (imagem) escreve em seu blog Raposas a Sul sobre ter conhecido a poesia de Marcelo Ariel, deste blog, principalmente a partir do livro Tratado dos anjos afogados. Aproveitando o lançamento do mais novo livro de Ariel, A segunda morte de Herberto Helder, Cabrita lembra de três poemas que escreveu em homenagem ao próprio HH, a seguir:

Duas elegias e uma exortação

1
O momento é de crispação e detalhe. O Herberto está doente.
E a dez mil quilómetros o meu sopro é um eunuco, incapaz de segredar-lhe: aguenta-te meu velho, a vaca de aço, para atravessar o vazio a vau, tem de transpirar - e, em ti, desatar nós nunca foi repertório.
Quem nos autoriza a dissentir neste esplendor unânime – quem nos atraiu ao ardil de imaginar que, só quando o poema é diáspora de si, se abrem as torneiras do infinito?
Os desertos crescem e eu, inepto para matar dragões, rezo.

2
Poucos planam à altura dele, em vida.
Resta-nos aprender a morrer, e já é um pau. Um pau que não serve toda a obra.
De marmeleiro e despido da saudade de ser árvore, folhagem, cuco, ciclone. Pau intacto entre os despojos da batalha. Um pau que a cobra salpica de sangue quando, nas mão de uma criança, zune.
Poucos transitam por onde ele anda, escuto, não é inabitável a sua noite, escuto, ondas de rádio engravidam fantasmas que conversam, imemoriais, como o girassol inclinado para o astro, escuto.
Sem solenidade, de coração entre as mãos, como todos nós.

3
Aprende a confiar no veneno que a vida te administra,
na benignidade da colher onde relampeja o cadafalso;
confia na visão dos que te amam, apesar de extraviados
como paus e copas nas mangas do batoteiro;
tens de confiar: nem todo o ovo choca a serpente
e há voos onde vingam as sílabas insepultas;
terás de confiar no Sem Pele, que apertará o teu laço
depois de destrunfar-te o acervo, as grainhas,
confia, não é póstuma a acácia, se as suas lâmpadas
vermelhas deixam de boiar nas chuvas de Março;
tens de confiar: só pela feição do vento sairás do labirinto,
só pelo esplendor nómada é o chaveiro de ouro;
confia na queimadura que sulca e impele as trevas
ao palor lacustre do mais breve lampejo; confia:
os teus olhos voltarão ao lustre da sala onde Deus
guarda as pautas da rebentação nas praias sem vivalma;
nunca te canse confiar no prodígio com que a memória
irisa a pena em sua asa – num hiato de ser manca;
e fia-te no gorjeio das manhãs, no contraponto
que, alheio à tua aptidão para línguas constela
os corações; confia e rediviva a amizade voltará
a pular sobre as buganvílias nos cem metros barreiras;
basta confiares no verdor da epifania;
na salva de arrepios que te lança na bruma dos rios;
ou na metade de fantasma que rói a desacordada
carne dos teus gestos. Terás de confiar, a trama é simples,
basta o cisne não estar rouco à hora do requiem –
e é inigualável a vantagem em amar o corpo
de quem nos cilindra com um xeque-pastor.
Confia: a montanha voltará a ocupar o lugar
do poema, e o seu trilho entre as nuvens.

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