sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Alessandro Atanes, para o Porto Literário

Sim, Natal, Ano Novo, eu sei, mas as leituras me levaram para um tema sombrio, o 11 de setembro de 2001. Terminei o livro El mal de Montano, cujo título se refere à fixação doentia pelo literário. Este  romance de Enrique Vila-Matas se alimenta de diários de autores e é ele mesmo em parte narrado como se um diário fosse.

Acabei percebendo que em artigos anteriores acabei fazendo um diário de leitura, anotando as paisagens portuárias desta história que adota o diário de um autor viajante como forma. Tratei do livro nos artigos Portos literários no Porto Literário, Inflamado de literatura e Notas culturais de fim de ano.

I
Neste livro publicado em 2002 em Barcelona, o texto nos apresenta o protagonista sob aspectos diversos em cada uma das partes, como alguém que viaja, como alguém que age, como alguém que lê, como alguém que fala, como alguém que ouve, e sempre como alguém que escreve.

Na quarta parte, o diário de um homem desenganado, iludido, passa a ser interrompido pela segunda pessoa do discurso, que toma a fala do narrador (a segunda pessoa do discurso é mais uma das facetas da ideia de duplo tão explorado por Vila-Matas). Passamos então a ouvir este dirigindo-se àquele em segunda pessoa, a maneira informal, amigável, em espanhol (uso a terceira pessoa na tradução para manter a relação entre o personagens no mesmo tom, o do “você” no Brasil, que contaminou até a segunda pessoa em muitas regiões do Brasil com o “tu” conjugado como “você”. A cena sobre o anúncio do atentado às torres de desenrola em Lisboa:

Ao meio-dia do dia seguinte, no restaurante sem televisão e razoavelmente agradável da rua das Janelas Verdes, almoça com seu amigo Dumpert e com Manuela Correia. Um minuto antes do telefone celular dele tocar e inteirar vocês do ataque a Manhattan, entra no local um grupo de pessoas feias e ruidosas e vocês três ficam mudos e horrorizados, até que Dumpert diz algo dos bárbaros que acabam de entrar:
- O mundo não muda.

Acometido pelo mal de Montano, o protagonista/autor do diário/segunda pessoa interpreta o fato unicamente pela expressão literária:

Você pensa em Franz Kafka.
Vê na televisão de um bar as imagens do atentado e volta a pensar em Kafka, que imaginou algo que à sua maneira também mudou o mundo: a transformação de um caixeiro-viajante em uma barata. O que teria pensado vendo o espetáculo de aviões e fogo de Manhattan?
Kafka era um ser enormemente visual que não suportava o cinema, porque a rapidez de movimentos e a vertiginosa sucessão de imagens o condenavam a uma visão superficial de uma forma continuada. Dizia que no cinema nunca é o olhar que escolhe as imagens, mas que são elas que escolhem o olhar.

Mais à frente, a infecção de literatura inflama: 

Você se pergunta o que teria pensado Kafka – ele, que não suportava o cinema – de todo o espetáculo visual do ataque a Manhattan. E se pergunta isso em Sevilha, na mesma noite do dia 11.  E se pergunta isso enquanto abre o diário de Kafka em 11 de setembro de 1911, isto é, justamente 90 anos antes dos ataques às Torres Gêmeas. Você está na casa de Antônio Molina Flores. Vai dormir hoje no sofá da casa dele, à espera de amanhã decidir se volta ou não a Barcelona.
Você abre o diário de Kafka nessa data há noventa anos e vê que nesse dia ele se dedicou a descrever, com grande número de detalhes, a colisão entre um automóvel e um motocarro. Trata-se de um leve choque que Kafka havia presenciado naquele dia pelas ruas de Paris.

A literatura engole a História, todo o acontecimento é deglutido e refletido apenas pelo literário, o atentado só toma significado para o narrador enquanto a leitura do diário oferece sentido para isso. Em si, a passagem toda sobre o 11 de setembro não diz nada de novo sobre o atentado, mas o valor histórico da cena me parece estar mais na história pessoal do narrador, ainda que fictícia. É na sucessão de pensamentos, comentários com amigos, associações entre a notícia e que se fazia quando ela irrompe que o leitor estabelece uma relação direta com o texto, lembrando ele mesmo do que fazia exatamente no momento em que tudo aconteceu.

II
Sobre o 11 de setembro, lembrei também do único romance de Flávio Viegas Amoreira, “Edoardo, o Ele de Nós”, no qual um triângulo afetivo se rompe com o atentado. Apesar da diferença no registro – a escrita de Flávio mostra as vísceras e fluidez da linguagem – retoma-se a narrativa do impacto do evento histórico na vida individual: 

… Edoardo era sobrevivente de Dresden Zurique eu ele tínhamos perdido 5 milênios naquele setembro: não mais um micróbio ou aperto nuclear eram explosões residuais povoando nossos anos-medo. as coisas falamos de coisas quando forçamos alguma metafísica as coisas desandavam apesar de seguidas, vinho banal. Onde era maio e últimos arpejos de verão esgarçavam-se namarelidão: calor incomoda, só desapega do tato, enoja suarento o pele de sal e cobre...

O livro começa com a descrição do que houve com os personagens após a história e diz o que segue abaixo de Edwin Ducasse. É mais um destes nós entre o fato histórico e a experiência pessoal, ainda que fictícia, por meio dos quais a literatura cria conhecimento sobre o mundo:

Edwin Ducasse nasceu em Lowell, Massachusetts, em 1962, editor independente e crítico do ’New Black Mountain Magazine’, viveu 4 anos no Rio de Janeiro. Moramos juntos entre 1993-4 em St. Marks Place no mesmo apartamento de Trotsky no exílio: jurávamos ouvir passos de Marianne Moore, Edmund Wilson e Benjamin Britten no hall do velho edifício. Edwin traduzia “Avalavora” de Osman Lins e contos de Samuel Rawett para o inglês quando desapareceu em 11 de setembro. Era ’brasilianist’ sem convicção além da Literatura.

Um dos traços da literatura de Flávio Viegas Amoreira é também essa infecção pelo literário, em seu caso como inflamação da linguagem, como em Edoardo..., mas também em Maralto, A Biblioteca submergida e, principalmente, sua obra que considero manifesto de sua escrita, Escorbuto cantos da costa, obra fecunda cujos verso "chuva no mar é desejo" tem se multiplicado em uma série de escritos, canções, citações, roupas e até cartazes lambe-lambe, hoje um refrão ecoado pela cidade.

Feliz 2012. 


Referências:

Enrique Vila-Matas. El mal de Montano. Barcelona, Espanha: Anagrama, 2002.
Flávio Viegas Amoreira. Edoardo, o Ele de Nós. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.

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