sexta-feira, 24 de agosto de 2012


Alessandro Atanes, para o Porto Literário

Trilhei nas últimas semanas por algumas ideias em torno de alguma poesia sobre o Porto de Santos (aqui). Sem esquecer a singularidade de cada obra, busco por aproximações e tento identificar padrões, ou pelo menos pistas para escrever uma história entre eles. Em um grupo, reuni poemas de autores que começam a escrever (ou estão prestes a começar) na primeira metade do século XX. Ribeiro Couto (o mais velho, 1898-1963), Roldão Mendes Rosa (1924-1988) e Narciso de Andrade (1925-2007). As vidas dos três acompanha gerações de imigrantes.

Ainda que o porto não seja o único tema desses autores, seus poemas com o tema são realizados em torno de um sentimento do que chamo nostalgia da partida (“Com tanto navio para partir / minha saudade não sabe onde embarcar”, íntegra aqui), que podemos rastrear, quem sabe, no fado e na literatura portuguesa.

No outro, poemas de escritores nascidos ao longo da segunda metade do século e que começam a publicar de forma sistemática na virada para o século XXI. Não há mais imigrantes em massa por aqui, o cais em que os viajantes pisavam foi tomado por uma série de operações industriais alocadas em áreas gradeadas por concessionárias públicas. O afastamento entre o porto e a cidade acaba por se consolidar com a avenida perimetral, uma verdadeira linha limítrofe que, em troca de uma melhora provisória no trânsito, tomou território da cidade. Para contrapor, chamei-os de poemas da desolação, de um porto hostil ao cidadão, cujo exemplo na ficção é o cemitério do Paquetá ser transformado pelo autor Alberto Martins em um pátio de contêineres.

De todos os quilômetros do Porto, só resta ao cidadão ver alguma coisa só ali na Ponta da Praia, do final da areia até as balsas para Guarujá e só um pouco do início do estuário. Dali, Martins e Ademir Demarchi escreveram poemas em que observam navios a “comer” e “devorar” a margem do outro lado, onde a ferrugem dos navios é vista a olho nu. É o caso de “Engolidores de contêineres”, de Ademir Demarchi, do livro “Costa a Costa” (2012), reunido no volume “Pirão de Sereia” (Realejo / Facult), lançado em abril.

imensas massas náuticas
os navios de perto impactam
a paisagem e a comem
num pedaço de essencial

remendos entintados de fome
na natureza morta da baía
mais pesados que a água, bóiam
vorazes engolidores de contêineres
interferências paquidérmicas
que deslizam pelos olhos e viajam

Entre essas duas massas de poemas, gostaria de ressaltar hoje um escrito que forma um desvio, escrito durante período de exceção. É o poema Apenas um navio, de Lídia Maria de Melo, de 1982, fase final da ditadura. Ele evoca a infância como o poema de Ribeiro Couto e remete a um clima inicial de uma beleza nostálgica em meio pescadores, botos e navios e, então, o trauma, a chaga no cais, a presença do navio-presídio Raul Soares no estuário, próximo à Ilha Barnabé, impede a identificação do entre o grupo nostálgico. Por sua vez, a desolação dos poemas do segundo grupo tem a ver com o afastamento entre o porto e a cidade. Não é - mesmo - o caso de Apenas um navio, cujo próprio nome aponta para a singularidade, "apenas um". No poema de Lídia não é desolação que presenciamos, e sim a incerteza do Estado de Exceção após o golpe. É o que afirma o poema, por mais que outros tentem amenizar a distensão. Devo voltar ao poema em outras semanas.

Apenas um navio

No ano de meia quatro,
no meio do estuário
em frente ao porto de Santos,
o porto de minha infância,
Das barcas e das catraias,
dos navios e rebocadores,
Dos trens e dos armazéns,
onde os botos,
às cinco e meia da tarde,
viravam cambalhotas
enquanto as gaivotas
fisgavam peixes no mar,
avistava-se um navio
velho, preto,
ancorado
próximo à Ilha Barnabé,
que os menos informados
confundiam com um navio comum.
Mas eu e muitas crianças,
que ansiavam
para verem os pais
(confinados),
sabíamos que ele era bem mais
que um navio qualquer
e o culpávamos
pela ausência paterna
nos almoços de domingo,
pela angústia disfarçada nos olhos de nossas mães,
pela melancolia que abraçava
todas nossas brincadeiras,
pela vontade de chorar
sem saber bem o porquê.
Nós já sentíamos tudo
e éramos tão crianças!
Só o que não entendíamos
é que o Raul Soares
era apenas um navio
e não tinha culpa de nada.
Não tinha culpa de ter virado
instrumento repressivo
no ano de meia quatro.


Apenas um navio

Referências

Lídia Maria de Melo. Raul Soares: Um navio tatuado em nós. São Paulo / Santos: Pioneira / Universidade Santa Cecília, 1995.
Alberto Martins. Cais. São Paulo: Editora 34, 2002.
Ademir Demarchi. Costa a Costa. In: Pirão de Sereia. Santos: Realejo Edições / Fundo Municipal de Cultura, 2012.

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