sábado, 18 de maio de 2013

Márcia Costa
Vila do Teatro, onde se pode gritar a arte

Uma outra Santos resiste no Centro Histórico – aquela sonhada por Plínio Marcos, Patrícia Galvão, Maurice Legeard e tantos outros que foram fundo na briga pela arte. A Vila do Teatro foi inaugurada em maio de 2012, no mesmo dia em que se deu a simbólica retirada das grades da praça, por determinação do Ministério Público. Desde então muita coisa mudou por ali, pois o espaço, mais do que teatro, trouxe vida para a Praça dos Andradas e para todo o entorno. 

O surgimento da Vila deu um pontapé no processo de renovação que aos poucos transforma o lugar em ponto de referência cultural. Depois da reinauguração do Teatro Guarany, da abertura da Escola de Artes Cênicas Wilson Geraldo no prédio anexo ao teatro e da instalação do Espaço Aberto ao lado do Guarany, os artistas mostram que é possível criar ali um cenário parecido com o da Praça Roosevelt, o tradicional centro cultural paulistano. A Cadeia Velha (Oficina Cultural Regional), atualmente em reforma, é outro espaço que, reaberto, poderá dinamiza as atividades, além da presença dos sebos e da CPFL.

Mais um dia movimentado na Vila
A Vila é resultado de antiga reivindicação de artistas da região e tem o apoio da prefeitura, que cedeu o imóvel em um contrato de concessão de uso - a renovação deverá ocorrer ainda este mês, conforme Caio Martinez Pacheco, um dos criadores da Trupe, ao lado de Raquel Rollo. E onde há arte, já se sabe, muita coisa muda. “Diminuiu a violência, o uso de drogas, as pessoas nos respeitam, cuidam do lugar, entram pra conhecer a Vila”, conta Júnior Brassalotti, integrante dos Phantanas Núcleo de Pathifarias Circenses, grupo que administra a Vila ao lado da companhia Trupe Olho da Rua. 

Em uma cidade onde os casarões são diariamente abatidos para dar lugar à especulação imobiliária, ver a Vila se manter firme e ativa é no mínimo esperançoso. “Esse espaço já abrigou a rancheria do Barão de Mauá, um centro de controle de Zoonoses (num só mês, matavam ali 600 cachorros nos anos 60), um albergue noturno, a guarda municipal e uma elétrica. Então, depois de permanecer 10 anos fechado, tornou-se a Vila do Teatro”, explica Caio. Hoje o imóvel da Vila, conquistado pelos artistas, pertence à Secretaria de Cultura. O espaço foi um alento para os grupos, que antes contavam com a estrutura da Cadeia Velha.

Enquanto a cadeia permanece fechada, a Vila do Teatro escancara as portas para a arte e a reflexão, abrigando uma série de iniciativas importantes não só para a população santista, mas de outras cidades da região. O espaço dá continuidade às atividades da Escola Livre de Circo, graças a uma parceria com a Oficina Cultural Pagu, que forneceu o material da escola. Os Phantanas, que surgiram na Cadeia Velha, além de integrar a gestão da Vila, ministram a oficina de circo gratuita. “A Vila também serve como sede do Movimento Teatral da Baixada Santista, pois após o fechamento da cadeia o movimento ficou sem espaço”, explica Caio.

Dia de circo na Vila

A Vila abriu as portas servindo de sede para os grupos Trupe Olho da Rua, Oficina do Imaginário, Quarteto Trio Los Dos e Casa3. Hoje abriga os coletivos Trupe Olho da Rua, Phantanas e Casa 3, este último responsável pelo Projeto Bispo do Rosário, núcleo de pesquisa sobre a vida e obra de Arthur Bispo do Rosário, com direção de Kadu Veríssimo. Outra proposta mais recente que passou a ocupar o local é o Cineclube Maurice Legeard, que promove semanalmente a exibição de grandes obras-primas que estão distantes das salas comerciais, como as produções do italiano Federico Fellini. As discussões reúnem gente interessada em debater cinema de arte noite adentro, animadas pelos fundadores do cineclube, os estudantes de cinema e audiovisual Rodrigo Zerbetto, Victor Alencar e Gabriel Peres.

Kadu Veríssimo, um dos muitos artistas
que fazem a Vila
Naquele endereço da Rua Visconde do Embaré, ao lado da rodoviária, na Praça dos Andradas, há oficinas permanentes e gratuitas de teatro de rua e circo, além de uma programação que inclui apresentações de filmes, peças teatrais e musicais, saraus, sem falar nas apresentações diversas que ocupam a própria praça. Na Vila toda programação tem entrada franca, exceto o espetáculo, que integra o sistema “Pague quanto puder”. Por semana, 150 pessoas passam por ali seja como público ou como integrante de oficinas. No espaço também se encontram em processo colaborativo biblioteca, videoteca, e um pequeno alojamento para artistas e grupos que vêm de fora se apresentar na cidade. “Já abrigamos um grupo do Acre e três da Argentina”, diz Caio. O espaço também já promoveu atividades como exposições, além de curso de História Social da Arte, de dança e canto. 

Luiz Fernando de Almeida, outro artista que
agita a Vila, se prepara
para viver A Dama da Noite
Entre as muitas ações que circularam pelo espaço estão o lançamento  de uma edição da revista Sanatório Geral, espetáculos como Dentro de mim mora outra (encenado por Renata Carvalho, que codirige a peça com Maria Tornatore em texto de Ronaldo Fernandes), o monólogo A Dama da Noite (do ator e produtor Luiz Fernando Almeida, com direção de André Leahun), o espetáculo Negrinha (da Oficina do Imaginário, com direção de Paula D'Albuquerque) e eventos como o Sansex. O Virada Ilegal, evento que ocorre na mesma data da Virada Cultural, terá como um dos pontos a Vila, além do Teatro Aberto. 

Quem começa a aprender teatro e circo na Vila tem um  promissor chão pela frente, já que o espaço investe em curso para iniciantes e avançado. Uma das mais jovens alunas, Sara Barros, de 12 anos, conta que desde começou o curso não quis mais parar. Matheus Ferreira, de 18 anos, mais conhecido como Revy, estudou teatro e circo no local, tornou-se monitor e montou seu próprio grupo, que já se apresenta em São Vicente, Cubatão e Praia Grande. Maria Cecília Santinho, de 54 anos, e Jorge Viana da Silva, de 46, frequentam há tempos a oficina de teatro e sua dedicação já rendeu indicação de melhor texto inédito do Fescete, participações no Carnabonde e no Auto de Natal de Palhaços, promovido pela Trupe.


Acima, o núcleo do Projeto Bispo do Rosário; abaixo, aula de História da Arte

Na Vila todos se sentem parte daquele lugar. O telhado com partes deterioradas dá vazão a insistentes goteiras, mas isso não tira o valor do espaço, frequentado por gente de São Vicente, Cubatão, dos morros, de bairros como o Saboó, de Praia Grande... A manutenção é feita pela contribuição dos grupos e dos alunos, que doam materiais, principalmente de limpeza. 

Militância cultural

A Vila do Teatro existe à custa de muito debate sobre políticas públicas. Para dar força à ocupação do espaço, a Trupe e os Phantanas contaram com o apoio de 30 grupos de grupos de todo o País, que se mobilizaram participando de um abaixo-assinado e enviando cartas em prol da ocupação, hoje estampadas na parede da Vila. “Muitos destes grupos realizam ocupações de espaços públicos ociosos. Ainda este ano, haverá uma reunião na vila com diversos gestores companheiros que ocuparam espaços em São Paulo para mostrar como aconteceu cada ocupação”, conta Caio.

Junior Brassalotti, Caio Martinez e Raquel Rollo, na biblioteca da Vila
Todas as terças o Movimento Teatral da Baixada Santista se reúne no local. A proposta é que em breve as reuniões ocorram também nas demais cidades da região. “Existe um mercado, mas é preciso formatar e discutir arte para além disso. As políticas públicas estão cada vez mais voltadas ao mercado, como a lei de incentivos fiscais, que coloca nas mãos dos empresários a decisão de escolher quem financia e dita cultura”. 

Ativo, o Movimento Teatral da Baixada Santista se insere em todas as discussões necessárias, inclusive do Conselho Municipal de Cultura, do qual Caio é conselheiro de Teatro e o ator/produtor Luiz Fernando de Almeida, de Produção Cultural. O coletivo se mantém presente em debates cruciais para a cultura da cidade, como a proposta da Prefeitura de Santos de transformar a gestão do prédio da Cadeia Velha, até então a cargo do Governo do Estado, em uma gestão compartilhada com o governo municipal, o que não agrada ao coletivo e a muita gente da cidade. 

“Nós da Trupe, fazemos parte da Rede de Teatro de Rua, artistas que produzem em rede”. Esse contato com a arte produzida nos mais variados cantos lhes permitiu, por exemplo, trazer artistas da Argentina que se apresentaram no Sesc e na própria Vila, ampliando no local o convívio entre estudantes e artistas do circo e do teatro. 

Reunião dos vileiros
Ali na Vila, o Movimento Teatral da Baixada Santista também cuida de um dos mais antigos festivais do Brasil, o Festival do Teatro Amador (FESTA). O Movimento dispõe de uma sala com os arquivos do festival e de todas as ações do Movimento Teatral. “Este ano o festival irá para sua 55ª edição e o tema será Movimentos, trazendo debates sobre movimentos sociais e teatrais, além de espetáculos nacionais e estaduais selecionados pelos integrantes do movimento teatral. Os espetáculos regionais inscritos no edital e que cumprirem os critérios de documentação estarão automaticamente na grade de programação”, explica Caio. O Movimento tem buscado dialogar com os vereadores da cidade, a fim de apresentar o projeto do festival e transferir a data do FESTA no calendário municipal. “Além disso, estamos deixando os vereadores cientes de todas as ações realizadas pelo movimento, como ocupação dos espaços públicos”. 

A arte como processo coletivo e de reflexão é o que move os grupos que gerem a Vila. A Trupe Olho da Rua é exemplo disso: integrante da Cooperativa Paulista de Teatro, o coletivo há anos batalha para disseminar arte pelo país. Para levar teatro às mais diversas ruas, possui veiculo próprio e investe constantemente em processo de formação. Em Santos a Trupe já circulou por muitos bairros, assim como o coletivo Ciclocênico, o grupo Tesctom (Palhaçaria) e a Casa 3. “De uns quatro anos pra cá, conseguimos estabelecer o teatro de rua”. A Trupe circula ainda por diversos estados - este ano foi para Londrina e Porto Alegre, e em junho participará do circuito cultural do Sesc, um ônibus que leva cultura para várias partes do Estado.

Arte e reflexão, cimento da Vila.
Da mesma forma atuam os Panthanas, o primeiro grupo da Baixada Santista que pesquisa exclusivamente a linguagem circense para as ruas. Na bagagem já são mais de 200 apresentações, levando o circo para as praças e palcos do Brasil. Junto com a Oficina Cultural Pagu e Oficina Cultural Gerson de Abreu do Governo do Estado de São Paulo, ministraram oficinas de circo por cidades da região e Vale do Ribeira.

A Vila é viva por conta da ação destes dois grupos e de todo um coletivo que se mantém forte, formado por gente como o pessoal da Casa 3, do Cineclube Maurice Legeard, dos alunos, monitores e de tantos outros que fazem a Vila ser o que é. São os chamados "vileiros", como explica Caio. O que parece mover aquele lugar é o fato de que todos os artistas, produtores, pesquisadores, professores, alunos e público envolvidos no cotidiano desse palco ativo que é a Vila do Teatro acreditarem, como Plínio Marcos, que “Teatro só faz sentido quando é uma tribuna livre onde se pode discutir até as últimas consequências os problemas dos homens”.

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