quarta-feira, 5 de novembro de 2014

MARCO CREMASCO

Rabiscos do tempo (Imagem: Márcia Costa)


Por Marco Aurélio Cremasco

O vento traz – de longe – a brisa do Ivaí. Manhã discreta. Manhã qualquer em que as crianças caminham sonolentas à escola e o pai, ao trabalho. Depois da louça lavada e das camas arrumadas. Após o silêncio ocupar todos os cantos daquela casa e os cantos dos pássaros esvoaçarem as cortinas rendadas da janela, de modo o sol deixar o acanhamento de lado e pipocar luzes em sua face, a mãe caminha. Com esforço, como se carregasse o tesouro de um mundo sagrado, senta-se, ajeita-se. Antes de tricotar, sorri; dá o primeiro nó, laça, enleia e reza... rezava para João, desde as primeiras falas até o instante de ele embarcar para a capital e lá fazer a vida e - quem sabe - um dia voltar doutor. Rezava para o filho fazer boa viagem. Fez casaco de retalhos para o frio, frango recheado em farofa e ovos, no caso de fome. Aconselhava a João para que tirasse a correntinha de ouro folheado e a guardasse, enrolada em um lenço (bordado pela avó) sob a sola dos pés. Não esquecesse que, a cada estação, descesse, espichasse as pernas e se refrescasse com o ar puro da inocência adormecida. E no balanço do ônibus que sonhasse, desdenhando distâncias. Na cidade em que chegasse, fosse direto ao hotel recomendado. Acordasse na hora marcada e comesse o necessário. Lavasse as próprias roupas e as passasse como quem permite um trem campear trilhos seguros de esperança. Na procura do emprego, deveria deixar o dinheiro em lugar apenas por ele sabido. Ao atravessar avenidas, que prestasse atenção, olhasse para os lados e, sem titubear, as cruzasse feito colibri. No trabalho, que João fosse humilde sem, contudo, envergonhar-se das origens. Orgulhasse da cor, do sotaque. – Nada no mundo é tão importante quanto as nossas raízes, João, principalmente aquelas plantadas no coração das pessoas, – dizia-lhe a mãe, que desatou em uma ladainha sem-fim: que João acertasse o circular, cedesse lugar às gestantes, senhoras e idosos. Não se envolvesse com intrigas. Não madrugasse confusões e alvorecesse prisões. Não se embriagasse e nem cultivasse inimizades. Se tomado pelo calor da paixão, que a escolhida fosse, sobretudo, amorosa. Alugasse lugar simples, de móveis simples. Nele houvesse sala, banheiro, cozinha e algum ninho. Na chegada do filho, que João ensinasse-lhe boas palavras, bons modos. Fosse ponderado, atencioso. Calmo, sereno, generoso. Tivesse a paciência de quem tece nuvens com o olhar. Caso o tempo o corroesse em rugas, a mãe rezava para que a velhice fosse feito pedra obediente à estrada. Que João compreendesse as coisas da época sem negar o passado. Tivesse saúde necessária para sentir a idade com dignidade e entendesse a perda dos entes queridos como quem consente a passagem do vento pela face. Na cadeira de balanço, enquanto tecia, a mãe rezava pelas cataratas, reumatismo, asma. Pela alma do filho encomendada na missa de sétimo dia. A mãe rezava por toda uma vida, enquanto João dormia, tranquilo, no seu ventre.

0 comentários:

Postar um comentário

Os comentários ao blog serão publicados desde que sejam assinados e não tenham conteúdo ofensivo.