terça-feira, 9 de dezembro de 2014

obra de Erwin Blumenfeld

por Marina Menezes


Sábado à noite. Num restaurante qualquer, um grupo de amigos se entretém decidindo que pratos pedir, já que apenas o valor da comida será dividido entre todos. Uma das jovens à mesa comenta que, sendo vegetariana, ficaria de fora do pagamento coletivo para escolher algo que correspondesse ao seu estilo de vida. Não começa nenhum discurso sobre assassinatos, crueldade contra os animais, testes de laboratório: faz sua constatação com poucas palavras, pacificamente.

Contudo, o comentário inofensivo provoca indignação do outro lado da mesa. Um rapaz não hesita em discursar em tom de escárnio sobre como vegetarianos são arrogantes e como tal comportamento não faz sentido. Palavras agressivas e autoritárias jorram de sua boca e ninguém parece se importar, nem o próprio enunciador – para ele, a violência da opinião displicente passa despercebida. A moça, surpresa pelo ataque gratuito de um desconhecido, recolhe-se num silêncio que mistura constrangimento e raiva.

Quem me dera a cena tivesse sido inventada.

Não sou vegetariana, e essa não é a questão. O problema no qual me concentro ao presenciar momentos assim é a tendência facilmente observável – e por isso, infelizmente, banalizada - da intolerância, da necessidade de imposição das crenças individuais. Mero exemplo entre muitos, muitos outros.

Não existem assuntos não-discutíveis: existem pessoas que não sabem discutir. É saudável e necessário que ideologias – políticas, religiosas ou futebolísticas – sejam, sim, alvo de debate. É justamente do questionamento que evoluem as ideias, que se entende melhor o mundo. Vivemos, entretanto, na era da velocidade e do conformismo. Chamo a esse conjunto perturbador de Síndrome do Castelo de Areia.

Segundo essa teoria inventada impulsivamente numa tarde de terça-feira, há pessoas infelizes no mundo. Dentre essas pessoas, algumas – afogadas em sua mediocridade – não enxergam forma fácil de melhorar a própria vida. Normalmente a solução demanda mudança, que por sua vez exige energia e auto-crítica. É muito mais fácil, convenhamos, deixar-se arrastar pela inércia de uma rotina acinzentada.

Mas nem tudo é perfeito. Alguns seres humanos, inquietos, desenvolvem um raciocínio e um comportamento que vai contra a ordem pré-estabelecida. Não necessariamente o tipo de adversidade que interfere na vida de outrem, bastando a singularidade que de fato diz respeito ao seu praticante: pode ser da forma de se vestir à preferência sexual. Basta tal cenário para que entre em cena a síndrome: uma parte das pessoas do parágrafo anterior, deparando-se com o incomum, sente um desejo incontrolável de condenar tudo que não compreende.

Não é fácil construir uma visão pessoal embasada. Cada pergunta, resposta e dúvida demoram a solidificar-se; tempo, leitura, experiência e outros fatores, pouco a pouco, podem construir de fato uma estrutura tão complexa quanto um castelo de areia. E não é fácil, por sua vez, construir um castelo: a areia é traiçoeira, e cada escultor imprime em sua obra tantas peculiaridades quanto é capaz. Sua imponência é adquirida pouco a pouco, e o artista desenvolve naturalmente um amor por sua obra.

E então chega o intruso, juiz da vida alheia. Não é de sua natureza apreciar a beleza singular da escultura, e buscar em seus recantos o encanto de um universo novo. O único desejo que irrompe em seu peito é o da destruição: ele quer, de qualquer jeito, por o castelo abaixo. Olha discretamente para trás, lembra-se da pobre pilha de areia que o aguarda em seu retorno triste e vazio e não hesita em seu ímpeto de ódio.

Se o carrasco não é frustrado por sua falta de bagagem, então está tomado por uma egolatria que sussurra em sua mente que toda e qualquer pessoa tem obrigação de fazer uma cópia fiel de seu castelo, porque através de uma lógica louca chegou à conclusão de que sua visão é a única “correta”.

E lá vai o demolidor – criança mimada travestida de adulto sóbrio – seguir seu impulso cego, sem admitir que um monumento erigido com tanto trabalho não será desfeito por um desejo infantil. O único efeito de fato é a reação de quem assiste ao ataque – reação essa que, obviamente, nunca será positiva.

Não é que todo castelo seja revestido de um caráter sagrado e intocável: simplesmente subestima-se a importância de nossas verdades humanas. A vida é uma grande lacuna sem sentido, e não há quem sobreviva a ela sem preenchê-la com seus próprios pilares, sejam eles a filosofia ou a televisão. Sem nossas ilusões e convicções para sustentar-nos, desabaríamos perante a enormidade do Universo e a pequenez de nossa existência.

Muitas vezes nos deparamos com pessoas que escolhem bases tóxicas – um racista, por exemplo. Por mais que seu preconceito seja algo danoso, é inútil gritar com ele para que seja compreendida outra visão, já que dificilmente uma discussão acalorada o faz mudar de ideia. Entretanto, a conversa amigável e questionamentos deixados cuidadosamente pelo caminho podem surtir mais efeito: deixa-se o protagonismo de uma nova postura para o agente da intolerância. Para muitos ativistas, é difícil entender a lógica de um tratamento "suave" para o dito opressor; contudo, o radicalismo do discurso é ainda mais ineficiente. Numa situação de extrema agressividade, a resposta enfática e enérgica é realmente necessária; contudo, quando se passa para um cenário no qual a intervenção pode ser feita sem ânimos exaltados, a conduta pacífica é mais fértil. Por pacífica, aponto a ausência de violência - inteligência, ironia e lógica são o contraponto perfeito para qualquer fundamentalismo. É da natureza humana a defesa contra o questionamento, tido como “ataque”, e por isso mesmo é essencial a calma daqueles que querem intervir na postura do próximo positivamente.

Voltemos ao restaurante daquele sábado à noite. Debrucemo-nos sobre o rapaz que discorda do vegetarianismo. Brincando de Deus – poder concedido ao escritor em seu microcosmo particular – mudarei a abordagem da cena. Agora, ele muda de lugar na mesa – senta-se ao lado da moça – e indaga, neutro, sobre os hábitos dela.

É comum que os escultores em geral sintam medo de expor suas obras, temendo eventuais ataques. É usual que sonhos e ideais sejam encapsulados e escondidos para não serem atingidos pela obrigação velada de permanecer-se na área de segurança delimitada pelo cotidiano insosso.

Mas a moça não fará isso, porque pressente a sinceridade do interesse. Assim, ela faz algo na maioria das vezes impensável: permitir que ele vislumbre o castelo.

Ele, firme, aponta pontos instáveis na estrutura; ela, surpresa, defende as imperfeições. Lado a lado, atravessam a arquitetura e tecem toda sorte de comentário. Não é que ela mude de ideia; o tempo é finito, e o rapaz se vai. Contudo, a voz dele ainda ecoará pelos cômodos vazios, e ela nunca mais olhará para as linhas tortas sem questioná-las. Provavelmente num momento de distração – ônibus cheio, ciclovia vazia – ela vá refugiar-se em devaneios, e neles será capaz de estudar sua criação por ângulos antes esquecidos. E, sozinha – mas após uma intervenção externa – ela será capaz de melhorar seu castelo. Não por imposição, mas porque a compreensão de uma melhoria num dos sustentáculos de sua alma tem um apelo irresistível.

O termo “ganhar uma discussão” deveria reverberar em todos os ouvidos como o absurdo que é. Pode-se afirmar de forma desleixada que todo o conhecimento adquirido pelo homem está ao alcance de um botão; a informação mais acessível, entretanto, não costuma ser utilizada como enriquecimento e sim como vitrine de argumentos. Basta deitar os olhos sobre um resumo, absorvê-lo de forma rasa e assumir uma postura arrogante: o tom de voz mais alto é o vencedor. Vencedor de uma disputa que não tem outro objetivo senão a auto-afirmação, o autoritarismo e um inútil sentimento de superioridade, a vã vaidade daqueles que passam a vida sem interrogações, seguindo regras que mal compreendem e sentindo-se desconfortáveis quando têm a ordem rotineira quebrada. A democracia é defendida em tom autoritário, e assim se esquece que o âmago da liberdade é a aceitação: primeiramente de nós mesmos, e, depois, do próximo.

A intervenção pacífica é o melhor caminho, pois engatilha revoluções de dentro para fora. Talvez seja meu amor pelas utopias que me permita acreditar num futuro mais democrático, menos dogmático. Futuro no qual as pessoas possam ouvir umas às outras sem medo do quão loucas ou deslocadas possam parecer, e sem serem de fato julgadas incessantemente por outros que têm como único benefício disso a arrogância infrutífera.

Não lamento tanto pelos destruidores de castelo de areia – esses normalmente já se blindaram contra minhas palavras. Aliás, se há algo que o tempo me ensinou é que as pessoas possuem o curioso hábito de enxergarem apenas o que querem (e quando lhes interessa). Meu lamento é por todas as vozes que se calam por medo da repreensão. Sonhos foram engaiolados, e os próprios sonhadores acostumaram-se ao conforto da prisão que criaram.

Foi-se meu tempo de resignação e silêncio - acostumei-me a deixar para trás os mísseis, escavadeiras e bombas atômicas lançados pela inflexibilidade cega. Prefiro carregar comigo a vitória de cada semente de incerteza que, de forma delicada, deixei na cabeça daqueles que se dispuseram a ouvir-me. Levo, também, cada ensinamento com o qual fui presenteada ao conhecer opiniões divergentes. Do tirano ao submisso, do alienado ao fatalista, da senhora do ônibus ao palestrante de sorriso falso: cada um deixou comigo uma parte de si, e para isso foi necessário apenas contemplar a diversidade de interpretações possíveis sobre a imensidão da vida. Se mudar o mundo é um clichê barato, ainda assim é de um idealismo inofensivo pelo qual vale a pena lutar.


E, caso alguém discorde, pode sentir-se à vontade para dividir um pedaço de torta de cereja e explicar-me minha inconsistência. Meu castelo de areia é firme, mas sempre dá as boas-vindas a um visitante em missão de paz.

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