quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

 Le Soleil (1912), de Edvard Munch


Por Marco Aurélio Cremasco

Quando o mundo acabará? Perguntou um guri ao padeiro. Quando findar a farinha – teve como retorno. Mesma pergunta ao leiteiro, ao sapateiro, à cozinheira. De cada qual, a resposta vinha do fim do ofício de cada um. Inconformado, foi ao coveiro, de quem escutou. – Quando deixarem de morrer. Conflito instalado. – Se uma tremenda bomba for detonada bem aqui, seu coveiro, e destruir tudo, ainda assim o mundo existirá? O coveiro cofiou a barba. – Terei de enterrar. E se o senhor morrer? Não terei nem quem nem como enterrar, portanto o mundo continuará. O argumento do coveiro mexeu tanto com o menino que, já adulto, enveredou-se pela estrada da Ciência e acabou especializando-se em Física Quântica. Entrou de cabeça no universo subatômico para estudar o paradoxo de Schrödinger, sobre o fenômeno da superposição, em que uma partícula estaria simultaneamente em duas situações distintas. Morta ou viva depende de quem a observa... ou de quem a enterra. E para o enterrado, o mundo acaba? Eureca! Voltou à cidade de origem para devolver a pergunta ao coveiro. Qual gato de Schrödinger o coveiro estava em uma cova, na própria. Cabia ao físico, agora só, sanar a dúvida sobre o fim do mundo. Para tanto, deveria abolir o tempo corriqueiro do relógio e suspender a percepção de duração para, dessa maneira, aprofundar-se no tempo que não está no cronômetro, permitindo a conversa com o coveiro. Não, o físico não estava maluco, pois se tratava de compartilhar o tempo mítico em que convenções são desconsideradas e que mortos são trazidos à vida. Tal situação é observada quando se tem fim de certo período e início de um novo. Aqui estou – ouviu. O físico considerou a voz fruto da imaginação, todavia aprofundou-se na questão se o mundo acabará ou não e debruçou-se na reflexão sobre começo e fim. O fim do que é velho para o começo do que é novo é tão antigo quanto a civilização. Sempre houve a necessidade de recriar para, dessa forma, dar continuidade. Ritos antigos existem para mostrar que a criação do mundo se repete em determinados momentos. Esta criação, em algumas culturas, é identificada à coroação de um novo chefe, como no caso de autóctones de Fiji, ou com a instalação de um novo governo, feito o estabelecimento de conselhos de governança nas missões jesuíticas sul-americanas no século 17. No final de cada ano, o conselho (cabildo) elegia o cabildo do ano seguinte, estipulando diferentes funções: mestre da capela, sacristão, chefes de milícia, zeladores etc. No primeiro dia de janeiro, os habitantes reuniam-se defronte à igreja e o sacerdote presidia o ato de posse, iniciando-o com um sermão que ressaltava a importância de uma boa administração. O que, convenhamos, não é muito diferente do que presenciamos no mundo contemporâneo em alguns países. A saudação de um novo tempo é percebida, certa maneira, no Naurôz, o Ano Novo persa, que, segundo a tradição, o monarca proclamava. – Eis aqui um novo dia de um novo mês de um novo ano; é preciso renovar o que o tempo consumiu. Na noite de Naurôz veem-se fogos e luzes e fazem-se purificações pela água. Qual a diferença para as luzes de 31 de dezembro e o banho de mar nos dias de hoje? É no dia de Naurôz que se tem lugar a renovação da criação na busca do novo tempo. Tais ritos e celebrações apontam para o Ano Novo como a necessidade de recomeço e de regeneração do tempo. Independentemente da cultura dos povos e da geografia que os separa, tem-se a tradução do novo ano ser ano bom na comunhão da esperança, desejada na chegada de sorte, felicidade, prosperidade, saúde e paz. O físico desencanou do coveiro e preferiu a resposta do padeiro e passou a aceitar o quão a farinha é importante. – Enquanto houver pão, haverá vida. Isso, também, ele ouvira feito sussurro e despreocupou-se quanto ao fim do mundo. Ano novo, vida nova. Não é? – pensou. 

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