domingo, 11 de janeiro de 2015



Por Marcelo Rayel


Haveria alguém que sobre a renúncia exalasse sua exata tessitura?
Deitado na cama do Hotel cujo quarto só conseguira da quarta em diante, sentiu o primeiro leve sopro do tempo cronológico em suas narinas. Houve certo desânimo, porque certamente havia grande cansaço. A mente tinha planos, o corpo não acompanharia. A alma já havia sido rebobinada pelo caminho sobre o Atlântico, estranhou dessa vez não ter passado pelo norte da Espanha. Aquilo era desajuste de fuso, uma maldita mania de ter no pulso o horário local e no celular o de Brasília. A cabeça fica confusa, má mensagem para o físico.
O quarto da quarta em diante era o mesmo da segunda.
A terça tinha sido desesperadora em termos de tentar desbloquear o cartão para despesas futuras. Apesar de ter resolvido em tempo hábil a questão monetária da jornada, sabia que toda aquela operação lhe custaria perto de seis meses para pôr tudo nos eixos outra vez. Deu graças aos avanços tecnológicos, resolvera tudo por comunicadores de telefone celular e sinais de wi-fi gratuitos a cada cabine telefônica. Algo impensável em sua terra natal.
Postava notícias para casa, do desalento da segunda-feira diante de um albergue que lhe negou estada, a sorte de achar um quarto num apertado hotel em Argyle Street, uma vizinhança praticamente importada, desinglesa, entre nativos se acotovelando aos milhares em Saint Pancras, transformando aquela extremidade da Euston numa espécie de Senador Feijó piorada. Uma fascinação por aquilo que não é turístico, profundamente drástica em termos de ânimo, três franceses perdidos naquilo tudo a fazer pão, vendedores de frutas nas calçadas levando dura da polícia às seis da manhã, assim como toda King’s Cross, paquistaneses e indianos que colocam a cidade para funcionar, vestidos com aquelas feições e aparências de derrubar o espírito. Doze horas ali já eram o suficiente para comprometer qualquer eventual resto de alegria que ainda se portasse.
Por que a vida real necessita de doses cavalares de boa vontade para que se encontre nela algum resquício de júbilo?
Entendeu porque nenhum daqueles lamentáveis pacotes turísticos vendidos na terra natal incluiriam aquele pedaço da cidade bem posicionado entre o centro financeiro e as diversões do Soho e Southbank. Não porque ali era sujo, quebrado, triste, com estrangeiros se empilhando nos prédios próximos a Argyle Square, alpendres e varandas feito lavanderias, varais a secar de fraldas a burcas. Não porque ali sequer os pubs eram ruidosos o suficiente para quebrar a imposição diária das sirenes na Euston, vinte e quatro horas, e no intervalo entre uma e outra um silêncio de rua de fazer qualquer um lembrar que há renúncias em andamento.
Haveria alguém que, sobre o desapego, dedilhasse sua canhestra arquitetura?
Os lamentáveis pacotes turísticos vendidos em sua terra natal não incluiriam aquele pedaço bem posicionado da capital em seus itinerários porque quantidades colossais de energia teriam de ser despendidas pelos turistas para que a autópsia se efetivasse, para que tudo aquilo diante dos olhos fosse devidamente destrinchado. Pacotes de viagem são para amadores e até o desaparecimento das airosas moçoilas de King’s Cross custaria tanques de conhecimento e paciência, quiçá dias e mais dias naquele mar de gente, buracos, sujeira e sirenes, para que certo entendimento de que aquela era a cidade real, desenfeitada, pronta para a execução de seus expedientes diários, ganhasse seu curso.
O que valeria dizer que o prazer seria colocado de lado para que a cidade real, que não está nos cartões-postais, folhetos turísticos overseas, combos da indústria turística, filmes, fotos em rede sociais, estivesse à altura dos olhos, ao alcance das mãos, impregnando a derme e a epiderme. Aquela era a Londonium que queria conhecer desde garoto, renunciando Eros e suas flechadas nos enormes painéis luminosos, The Strand, The Mall, abandonando a Ponte das Torres, o pepino erótico, o ronco do Tâmisa mal-humorado, os folclorismos comuns nos repórteres especiais das estações de televisão da terra natal, embrenhando-se em vivências lúgubres, quase insalubres, de fazer desabar a alma diante do fato que para o glamour entediante da capital tivesse lá o seu fascínio, muito sangue de coca-cola, barata, desperdício de sopro, teria de ser derramado.
O corpo permanecia imóvel sobre a cama. A mente dizia que já era início de noite, apesar do sol a pino, e que a tarde tinha sido inteirinha desperdiçada em sono, sono bom, não restaurador. Tentou encontrar alguma sombra de impulso que o jogasse para fora daquele quarto, já eram seis. O físico não lhe obedecia, desconhecia comando, intenção, planos. Seguiria para a Irlanda do Norte no domingo, ainda era quarta. Percebeu, depois de muito tempo, a ação que o tempo cronológico exerceu, o viço estava de partida. Sua costumeira teimosia o atrapalhava em ver, ou sentir, que o tempo seria, a partir daquele instante, de outra ordem.
O que seus braços e pernas, aparelhos inteiros, bioquímica e sistemas, permitissem. As rugas tomando seu lugar, os pelos embranquecendo, e o grisalho que já lhe acompanhava há tanto se transformando numa invasiva mecha amplificada a cada vez que o cabelo crescia. O corpo cansado sobre a cama numa Londonium que urrava sua tristeza de ônibus, trens e véus além da janela aberta daquele quarto, das cortinas vermelhas descerradas. Os mesmos bêbados franceses às duas da manhã, os panel-shows e filmes de época embalando adormecimentos sobressaltados pela negação de que era hora de parar.
Quem poderia explicar porque decidimos, em algum ponto da vida, pela renúncia?
Como disse uma vez Lourenço Mutarelli, a partir de um determinado ponto da existência o relógio começa girar ao contrário. É contagem regressiva, uma espécie de réveillon da instalação do defeito final. Só em Londonium que isso entra na carne. Como se cada beijo fosse o último, cada abraço fosse o último, cada passo fosse o último, cada respiração fosse a última, cada vibrar das cordas vocais fosse o último, cada lágrima fosse a última, cada coito fosse o último, como se cada gotícula de milionésimo de segundo nos fosse escorrer das mãos. A ordem agora seria outra, ainda que não quisesse, que não aceitasse.
Diante da terrível admissão do tempo cronológico como instância imutável para a ordem de tudo, percebeu que não haveria mais como compartilhar o resto de tempo que ainda tivesse pela frente para certos cafés pequenos, amargos, não mãos de seja lá quem for que acha que pode. Não, não pode. E descobriu naquela cama de quarto de um apertado hotel em Argyle Street, numa King’s Cross que já não existia mais, em Candem, ou em qualquer outro lugar daquela cidade, talvez do mundo, porque renunciamos. Porque o corpo já não obedece mais, os interesses são outros, a cabeça imprime determinados valores e preferimos nos lançar à solidão a manter uma felicidade artificial porque o amor durou tanto.
Pensou que nem Deus, e nem o amor, possuiriam lastro bastante para deter a tomada de decisão pessoal e intransferível que cada um tem em parar, aquietar-se, estar só e em silêncio, para o bem maior de se enxergar o dedo de contribuição que cada possui no estado ruim em boa parte das coisas que nos cercam. Não é a solidão que nos amedronta: é constatar que a trave também está em nosso olho. Talvez seja a letra fria de um enunciado que nos diz sobre nossa responsabilidade na manutenção da mentira, da deslealdade e da loucura, desnecessárias, dispensáveis. Não seria a dor causada pela solidão que mais nos paralisa diante de amarga jornada nesse silêncio, mas o despertar quanto ao entendimento de que não existiria, fundamentalmente, o erro de um, somente: somos, talvez, operadores dessa mesma deslealdade que nos afeta, ou coniventes à sua ação.
Mesmo que o toque seja divino, a última instância recai sobre cada um de nós: a manutenção de tudo aquilo que positivamente ou negativamente nos afeta. Continuar apartados da paz, do Amor Fundamental, da difusão do bem-estar, das construções dos Movimentos de Alma, ou não. O arremesso da mão sobre a mesa, o decreto de um basta definitivo e perene. Surge, assim, o combustível fóssil da renúncia. A liberdade só existe diante de pessoas e coisas onde se é possível dizer não.
A renúncia é o mais agudo, grave e dramático exercício da liberdade. O dizer não para um bem maior que, às vezes, custa a chegar, a se enxergar. Não é a dor do longo caminho em solidão compulsória que nos amedronta unicamente: é o peso da medida drástica sem avistar qualquer benefício à queima-roupa. Saber que pode não se estar vivo para o dia em que tudo definitivamente estará em paz. Um frio na barriga, passos incertos em direção a algo que, no fundo, não sabemos se estará em nosso entorno na brevidade que esperamos, aguardamos.
Em nome da paz: esse bem maior. Porque o corpo recolhe os sinais do tempo cronológico, ainda que a cabeça diga o contrário. Porque o físico nos empurra à ação contrária à carne, o valor se ergue para fora do tangível e não valerá mais a pena viver para certas alegrias, as quais insistimos em travesti-las ou batizá-las com o nome de felicidade, cujos efeitos colaterais são muito mais devastadores do que qualquer tempestade. Não! É preciso se opor, em cada gota de energia, a tudo aquilo que nos faz muito mal. Nem que isso custe sofrimento atroz, dor desenfreada, deixar de fazer tudo aquilo que inicialmente nos dava certo alento.
Se Deus nos cobrará quando o livro estiver selado e os gestos encerrados, o tempo será um matreiro rábula a nos meter o dedo na cara quando reclamarmos da sorte. Que se atravesse o tubo, os mares, os desertos, os ásperos caminhos de pedra para que esse dia da acusação do tempo, presente nos corpos que lentamente param de funcionar, nos seja suave, que vivamos em paz, aqui e em qualquer outro lugar.
Seu corpo finalmente começava a esboçar certa obediência à vontade da mente. Ou dar algum sinal de que poderia retornar para a Londonium que girava lá fora. Um banho. Um banho seria muito bom antes de sair. Escovaria os dentes sem grandes novidades quanto ao sabor da pasta. O sabonete era diferente, jamais tinha sentido aroma tão maravilhoso quanto aquele, não se faz perfume igual em sua terra natal. Permitia-se a sabonetes líquidos toda vez que a visitava. Sua passagem era breve e intensa, como se um ano coubesse em uma semana.
A prova de que alguém esteve em Londonium é quando se pede a costumeira pronúncia das palavras Leicester e Ladbroke Groove. A troca de roupa naquele quarto era um convite ao desânimo, havia apenas um pequeno espaço entre a parede e a cama para abrir a mala. Colocou o fone de ouvido e o carregador de celular dentro da bolsa como se enfia a alma nas crenças equivocadas. Desceu as estreitas escadas que rangiam sob seus pés e encontrou um conformado paquistanês no diário posto de recepcionista.
Avisou que chegaria tarde. Moveu o corpo em direção a Russell Square. De lá, pensaria em qual rumo tomar. Mais três, quatro horas de luz solar. Depois, noite e gelo. Fria e lacônica.

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