sábado, 21 de fevereiro de 2015



Le mot juste e a sintaxe de ‘pé quebrado’

Por Fernando Gomes

Grande Roberto.


De início posso lhe dizer que sou leitor fascinado pela forma e nem tão exigente quanto a conteúdo. É possível fazer fina literatura com banalidades (vide Rubem Braga) e impossível conferir estética a bom conteúdo se vazada em escrita banal e previsível. Por quê isso? Porque não tenho formação acadêmica de leitura crítica, o que me leva a não ter profundidade de análise para alcançar o posfácio de Celso Azzan Jr. Nunca li Lévi-Strauss ou Ricoeur. Logo, minha leitura é mais rasa e muito mais atenta e sensível às surpresas da forma. Mesmo não tendo ainda lido Uma Denise, me entendo melhor com Manoel Herzog.

Agora vamos falar de Le mot juste.

Cara, não tome como elogio facilitado pelas nossas gentilezas mútuas. Eu não faria isso; mas o seu livro é do cacete. Passeia pelo universo do demiurgo ardiloso (um "achado" retórico) com uma construção literária bem pensada, bem cerzida, com sacadas surpreendentes, com notável manejo da linguagem, e o mais importante para mim: uma belíssima experimentação sintática, principalmente nas elucubrações do hermeneuta noviço. Você experimenta especialmente ali uma sintaxe que chamo de "pé-quebrado", configurada em uma construção reversa e em um uso refinado da pontuação. Essa sintaxe de "pé quebrado" é a mesma sintaxe que vejo no "pé quebrado" das melodias/harmonias de Egberto Gismonti, no "pé quebrado" imagético de Claudio Assis, no relato que vai crescendo em alucinação na estética HQ de Lourenço Mutarelli em " A arte de produzir efeito sem causa". Essa experimentação resulta numa estética extremamente bem sucedida e é, de alguma forma, inaugural. Inaugural, não no sentido de que possa se tornar tendência, mas no sentido de patente, de propriedade/marca registrada. Se alguém já fez isso antes, não conheço.

Além dessa bela e, imagino, tenaz artesania com a gramática, há também a artesania com a palavra. São textos que qualquer autor assinaria.  Na página 66, Parte II, 1, o texto pensado pelo hermeneuta noviço (outro "achado" retórico) – 
sem precisar de inseri-lo no contexto da história – soa como música fina; tem contornos de escultura. Fecha-se os olhos e ouve-se música; de olhos fechados contempla-se mármore perfeito. É belíssimo, e há mais textos extraídos dessa mesma cepa estética. Agora, é realmente obra para iniciados nas artimanhas desse bruxo invejável, de quem tivemos a sorte de ser contemporâneos e expectadores de sua mágica verbal.

Vou começar Uma Denise.  Não tome como crítica; outra vez é elogio, mas você vai ter que "rebolar" no restante da trilogia para manter essa peteca no ar. Parabéns, cara. Brilhante.

Fernando Gomes, residente em Cachoeiro de Itapemirim, burocrata entediado até o ano de 2009, quando ao se aposentar, permitiu-se o luxo de só trabalhar se fosse com literatura. É sócio da Editora Cachoeiro Cult; tentou escrever mas se convenceu rapidamente de que se sai melhor como leitor. Cativo há trinta anos das artimanhas do demiurgo ardiloso.

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