quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Obra de Maneco Araújo


CONSERTANDO O MUNDO COM UMA CHAVE DE FENDA

Um conto de Diego Moraes



Nestor: Este silêncio tatuado nas tuas costas parece solidão. 
Damião: É só indiferença mesmo. 
Nestor: Fiquei sabendo que uma garota leu teus poemas e enlouqueceu.
Damião: Tudo mundo perde os parafusos hora ou outra. É só uma questão de sorte.
Nestor: A tia dela disse que a pobre rasgou as vestes gritando como arcanjo.
Damião: Tu és uma máquina de me deixar mal, cara. Nem sei como ainda perco tempo em vir aqui nessa praça jogar milho aos pombos. [Debandadas de pássaros acinzentados no céu de estrelas pálidas às cinco e meia da tarde] 
Nestor: Não queria te deixar mal, velho.
Damião: Onde ela mora? Não posso consertar o mundo usando uma chave de fenda.
Nestor: No alto do morro. Bem na biqueira onde soltam fogos quando a polícia invade. 
Damião: Nunca vendi palavras num lugar desses. 
Nestor: Sua poesia pode ter sido chutada sem querer de pé em pé e parado lá.
Damião: Tava desempregado. Sem grana pra tomar conhaque e todo mundo me chamando de vagabundo, aí resolvi vender poemas no ônibus. 
Nestor: Gostavam? 
Damião: Às vezes me davam moedinhas e jogavam os versos pela janela como garrafas plásticas vazias. 
Nestor: E a garota? 
Damião: Tem gente que é estrangeiro dentro do seu próprio coração e quando recebe um afago pesadão, acaba se abestalhando. 
Nestor: Lido algo bem forte, não? Lembras o que escreveu? 
Damião: O importante é sonhar e sofrer. Porque o universo é uma putaria de ilusões. [Zumbidos arroxeados de pancada na nuca. Um pro lado outro pro outro deixando sombras pálidas no katinguelê da chegada da noite)
Nestor: Vai pra onde? 
Damião: Respirar por aí. [Virgulas no enxame da lua cheia. Damião a encontraria descendo a ladeira e sopraria um Cartola de mansinho da taberna]. 
Doidinha: Hã? [Como se monologasse com as pedrinhas da sarjeta] 
Damião: Sou o cara que vai te tirar desse samba do crioulo doido. [Sambaram embaixo da chuva. Agora caminhariam juntos como animais sorridentes até morrerem abraçados de felicidade numa cama fria]


Diego Moraes é autor dos livros "A fotografia do meu antigo amor dançando tango" e "A solidão é um deus bêbado dando ré num trator" (Editora Bartlebee) e publicará até o fim de 2015 “Um Bar fecha dentro da gente” (Editora Douda Correria) e “Eu já fui aquele cara que comprava vinte fichas e falava 'eu te amo' no orelhão” (Editora Corsário-Satã).

0 comentários:

Postar um comentário

Os comentários ao blog serão publicados desde que sejam assinados e não tenham conteúdo ofensivo.