sexta-feira, 13 de março de 2015

Por Ademir Demarchi




Em Terra sem mal – um mistério bufante e deleitoso, Waldo Motta exercita uma das práticas recorrentes da cultura brasileira na poesia e uma das marcas do modernismo que vem até nossos dias: a de ler, relendo e reescrevendo contra e regurgitando, como ação antropofágica, a cultura nacional, em registro irônico e gozoso.

Oswald de Andrade (1927) e Murilo Mendes (1932) escreveram cada um a sua História do Brasil, assim como mais recentemente Silviano Santiago com Crescendo durante a guerra numa província ultramarina (1978) e Geraldo Carneiro com Pictografias do país dos papagaios (reunido em Pandemônio – 1989-1993), entre tantos outros. Este livro também se insere fortemente numa tendência contemporânea de resgate, tradução, reinterpretação e inspiração nas culturas indígenas, somando-se às experiências de autores como Antônio Risério, Ricardo Corona, Josely Vianna-Baptista, Jairo Pereira, Marco Aurélio Cremasco (vários desses incluídos na edição 5 de Babel Poética, de 2013, com essa temática), ou edições como Poesia Ameríndia, reunida em Poesia.br em 2012 por Sergio Cohn. 

Neste livro de Waldo está evidenciado o escracho, potencializado na montagem teatral que fez em maio de 2009, no Centro Cultural Majestic, em Vitória (ES), com trilha sonora inspirada em festas raves, mixando músicas que iam desde a trilha dos filmes de Blake Edwards, Pantera Cor de Rosa, até o kubrickiano Uma Odisseia no Espaço. A diferença fundamental com aquelas escritas, há pouco citadas, está na adoção que vem sendo recorrente em sua experiência poética, de uma tese que afirma que o cu é o centro do Universo, daí dois versinhos como estes: “Chovam graças em toró/ sobre quem ame o loló”. Ainda que Waldo afirme tal tese sempre em tom de galhofa, ele tem se esforçado muito com pesquisas religiosas, linguísticas, históricas, antropológicas... para provar ao leitor que essa constatação está em todas as culturas e religiões e até mesmo na Bíblia, como demonstrou fartamente em seu livro, já um clássico da poesia nacional, Bundo e outros poemas (1996).

Este Terra sem mal, com um saudável distanciamento do Brasil, foi amadurecido em estadia na Alemanha com bolsa do Landeshaupstadt München Kulturreferat (Departamento de Cultura de Munique), durante três meses, de novembro de 2001 a janeiro de 2002, na autorreferente Villa Waldberta, uma residência para artistas de relevância no cenário internacional, situada à beira do Lago Starnberger, de frente para os Alpes, depois de indicação feita pelo Instituto Goethe de São Paulo, e a disputa com candidatos de 40 países.

Nos poemas é possível reconhecer traços roídos no diálogo com Calderón de La Barca, Gil Vicente, Camões, Dante, Fernando Pessoa, Anchieta, Gandavo, Mário e Oswald de Andrade..., muita cultura indígena e textos bíblicos, que são retrabalhados em uma versificação depurada e irônica que se caracteriza pela negatividade como ação estética, resultando numa poética marcante e original.


O livro ganhou unidade temática quando Waldo leu no jornal de Vitória, A Gazeta, a notícia de encontros anuais que ocorriam na Serra do Caparaó, com índios de várias nações, comandados por um pajé guarani, com a finalidade de invocar o deus da montanha e do amor, Rudá, que, segundo o poeta, pode ser um avatar de Tupã. Um grupo de índios guarani foi parar no Espírito Santo em busca da tal Terra sem mal, no final dos anos 1960 e lá ficou. A reportagem registrava o fracasso das tentativas de contato com o deus da montanha e a Waldo chamou atenção um detalhe bizarro, mas iluminador: o nome do pajé que conduzia as cerimônias era Tupã Quaray, traduzível por Buraquinho de Tupã, uma vez que quaray significa buraco pequenocova, além de, como não poderia deixar de ser, significar o centroo meio do corpo, conforme as pesquisas linguísticas de Waldo. Com isso ele encontrou a chave para o desenvolvimento dos poemas e de criação do personagem principal, um Tupã gay debochado que se manifesta após as petições e invocações do pajé, aparecendo para confirmar a tese de Waldo de que o cu é, universalmente, o lugar da redenção de todos os homens e mulheres, independentemente de cor, credo, geração, classe social ou sexualidade. Ou seja, o lugar da transformação do ser humano em deus, daí a pesquisa justificada pelo autor de desvendar a religião, reinterpretando-a de modo subversivo, traduzindo a palavra no sentido que está no latim, em que religião significa religarereligar o homem ao divino, ou então, ligar pela répelas costas...

Waldo Motta chegou a ser militante do movimento gay, mas logo encontrou na poesia sua forma mais potente de lidar com a questão, enfiando-se por dentro da cultura e expondo suas contradições, reinterpretando sentidos para subvertê-la. Este Terra sem mal é um exemplo disso, configurado em sátira às concepções e buscas de paraísos religiosos, políticos, sociais e econômicos em todos os tempos e lugares, ainda que parta do caso dos ingênuos índios guarani. Eles, tendo à sua vista a resposta à busca do Paraíso indígena, não atinavam para o fato de que é um lugar simbólico, situado no corpo, nas entranhas, e alcançável apenas pela experiência subjetiva, nos ritos, nas celebrações, na festa, perdidas com a sua dizimação física, cultural e religiosa pelos brancos, transformada em errância.

O tom crítico também está num poema como ACEILOPTU-EUCALIPTO, configurado como um protesto contra a monocultura de eucalipto implantada no Espírito Santo. Nesse poema se harmonizam ética e estética, engajamento e arte, política e espiritualidade, em resposta à luta de índios e quilombolas pela recuperação de suas terras, forma encontrada pelo poeta para ajudar nessa luta. 

Cabe ao leitor agora enveredar por esse livro e encontrar seu centro perdido...

Enquanto isso, pode-se apreciar estes poemas:


MAR DE TANTO SANGUE E FEL
Mar de tanto sangue e fel,
mar amaro, mar cruel,
onde hemos de encontrar
a terra de leite e mel?

Quanto mais os ventos falam
da misteriosa terra,
tanto mais a alma errante
em procurá-la, erra.

Quanto mais perambulamos,
de léu em léu, pela terra,
atrás da terra sem mal,
tanto mais longe iremos
de nosso destino real.
***
VIVER É NAVEGAR
(NAVEGAR NÃO É PRECISO)
Nunca o mar dos navegantes
jamais o mar literal
dos fenícios e dos gregos
espanhóis e lusitanos
(exceto um certo mar
da Mensagem pessoana).

Apenas o mar simbólico
o mar espiritual
mar de sons e vozes
e cores e formas
em ondas de fogo
- este mar que agita
e ameaça a frágil
nau do corpo
que se atreve a amar
o pélago interior                                                          

este mar enfrento
estas águas singro, alheio
às miragens e ilusões
cego e mouco às tentações
e descaradas cantadas
de sereias e tritões.
***
REFLEXÃO DO PAJÉ
Estrangeiros em nossa própria terra,
sonhamos uma terra fabulosa, 
um mundo legendário,
e vagamos sem rumo nesta busca
do mítico país da venturança,
hebreus em eterna travessia
de um mar vermelho de sangue e vergonha,
ponte entre o precário e o supino
– via que nos leva ao divino.

Pobres almas iludidas,
mirrando em transe errático
neste vasto território, à procura
de outra terra nesta terra,
de outro mundo neste mundo
e outra vida nesta vida.

Em busca de outra terra
jamais encontrada,
quantos índios pereceram!
E quantos pobres diabos
ainda zanzam nestas belas plagas,
iludidos por um cruel engodo,
esfíngico mistério,
enigma simbólico, poético
– enfeitiçados por belas metáforas!

Terra sem mal, que tanto almejamos,
mirífico país, sonho que aflige
as nossas almas mais que o pesadelo,
onde te encontraremos?

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