quarta-feira, 24 de junho de 2015




Por Suzana Pires (texto e foto)



Aos que vem e não sabem aonde vão.
Aos que esperam e não sabem o quanto.
Aos que andam depressa para nunca chegar.



Aqui simplificamos a vida. Perdemos o tempo de plantio. Vivemos do outro.

Ninguém faz muito por aqui. As mulheres ainda cozinham o alimento básico. Os homens esperam. Mas já não conversam mais. Não vivem mais em grupo como antigamente. Tempo de solidão. As crianças cochicham e riem meios sorrisos e fazem maldades. Coisas de criança, ou não. Mas afinal quem se importa? Não há mais quem olhe por elas. Na escola, os professores estão à espreita, nas janelas. Há muitas janelas. Medo do futuro. Tanto que não se sabe se gostariam de parar o relógio ou acelerá-lo, para que esta agonia acabe.

As mulheres andam lentas e fazem aquilo que podem, depois param para esperar também. Daqui dá para vê-las sentadas à porta da cozinha, ajeitam a cadeira e as mãos sobre o colo e olham... E espicham o tempo de espera. A espera parece um descanso.
Os homens perderam o interesse pelo sexo, as mulheres também. Já têm uns cinco anos que não nascem crianças por aqui. Eles bebem muito e caem ali mesmo nos cantos das ruas e ficam até acordar, ninguém se importa.

Quando o sol bate forte todos parecem dormir de olhos abertos, e a espera parece que se arrasta ainda mais. Olhando daqui da minha janela do andar de cima, vejo tudo e torço por um temporal. Este é o único momento que todos se agitam. Quando ele chega e trás o reconfortante barulho das chuvas, posso descasar da minha vigília, durmo feito bebê que nada sabe e não teme crescer.

Tenho sonhos de ir embora, mas isso não importa no momento. Imagino, durante o tédio dessa espera, lugares com cores e movimento e barulho. Não há mais barulho aqui. Mesmo as crianças se afastam para falar, até elas temem cortar o silêncio.
Pergunto se ainda sonha o povo daqui. Mas sei que não, ou talvez seja uma espécie de sonho esta espera pelos soldados com seus canhões e fuzis e bombas.

Sabemos disso. Todos sabem. Só a guerra nos salvará desta morte lenta de viver de espera.

Eles atravessam o deserto sem lamentos, já faz muito que não olham para trás nem têm interesse de chegar. Onde quer que seja. Apenas caminham seguindo o comando. Param para beber e comer umas duas vezes por dia, ou serão semanas? Ou meses? Quem sabe...? Não se preocupam com isso, não contam mais o tempo. Ao final de tudo ouvirão uma ordem e farão o que deve ser feito. O que todos esperam deles. Nasceram para isso. Também já sonharam, mas hoje não, sonhar também cansa, e não podem gastar-se.          

Lá ninguém tem tempo a perder, ele é a moeda mais importante depois do dinheiro. Alguns dizem inclusive que ele é dinheiro. Ora caminham na mesma direção, todos. Ora seguem todos em direções diversas. Mas não importa, nem a eles nem a nós, porque aqui se trata da pressa.

Já foi diferente, essa gente. Já almoçavam em grupo, com a família e havia avó e avô para as crianças brincarem, agora elas também tem pressa e os velhos estão na cidade da espera, outra que existe no tempo apenas. As comidas são feitas por outros e não há mais mãe que faça comida nem pai que faça fogo, o fogo é profissional e arde rápido.
Só se detêm quando esbarram em alguém e param por segundos para retomar o caminho. Ficam incomodados de ver o outro e saem sempre pensando que tem razão e, não raro, verdadeiramente odeiam o outro por este breve encontro e pela interrupção que causa.

Eu sabia da existência desses todos, e sabia que um dia o encontro aconteceria. Na verdade, todos falavam disso há muitos anos, mas eles se esqueceram, e eu não.
Foi uma grande catástrofe ambiental que os trouxe para cá. Chegaram quase correndo com os poucos pertences que sobraram, pois pela pressa de chegar, pelo medo de não encontrar a saída ou pelo peso, deixaram seus bens no caminho.

Eles chegaram, e finalmente precisam parar, não há mais aonde ir. Ficam pelas calçadas sentados à espera que alguém lhes oferecesse abrigo, e o nosso povo começou a movimentar-se rapidamente, a esvaziar suas casas para abrigar os recém-chegados. Alguns pegam água e oferecem aos viajantes sedentos ali mesmo nas ruas. As crianças puxam as crianças recém-chegadas para brincar e logo se faz uma algazarra que eu nunca ouvira.

Só eu não me distraio e por isso vi, antes do pôr do sol de ontem, uma fina linha que se movimentava parecendo uma serpente que cobria toda a linha do horizonte. Até onde meus olhos alcançavam. Aguardei, e ao escurecer o movimento cessou. Não sabia que atitude tomar, então fiz o que sempre faço, esperei. No curto período desta noite pensei que fosse tempo de espera novamente, mas logo ao amanhecer eles chegaram com seus uniformes e suas armas. E são muitos.

Por Suzana Pires, repórter fotográfica por profissão. Fotógrafa ensaísta/documentarista e ativista política e ambiental. “Escritos no trem” são contos e poemas que escreve enquanto percorre o trajeto entre a cidade de Novo Hamburgo até Porto Alegre capital do Rio Grande do Sul. Faz parte de grupos de poesia e publica esporadicamente nas redes sócias. Este é seu primeiro conto publicado.



5 comentários:

  1. muito boa a matéria !




    www.filmesepicosonline.com

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  2. Perfeito, o conto. A Suzana conseguiu criar um clima perfeitamente condizente com a mensagem proposta. Bastante criativo, o conto nos chama à reflexão.

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  3. Roberto, obrigada pelo retorno. Isto do clima que falas é muito importante para quem está se "atrevendo" neste caminho de tentar se comunicar com as palavras.

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  4. Suzana, que lindo. Poético, dramático, "interiorizante"! Adorei!

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