quinta-feira, 30 de julho de 2015



Suzana Pires (Texto e imagem)

Quando chega o inverno aqui nos pampas, com sua umidade que lava as paredes, relembro sempre da história. A única que ouvi dele mesmo, o índio charrua...

Ouvi falar dele nas minhas andanças pela fronteira, quando, sonhando fazer um projeto que abordasse a relação dos moradores dos dois lados da divisa entre Brasil e Uruguai, caminhei com minha mochila e câmera pelos mais ermos lugares deste rincão.

Certa feita, numa roda de chimarrão entre os peões da fazenda Ananás, um homem meio bronco e com a pele cor de bugre, provável descendente dos povos nativos daqui, desandou a falar dos antigos habitantes da região. Contou que havia, por aquelas bandas, um “tal índio” que contava agora quase cem primaveras. Nascera no final do século XIX e, órfão de pai e mãe lá pelos dezoito anos de idade, saiu da região para viver nas cidades.  Participou, segundo as lendas locais, da Coluna Prestes e acabou parando no Nordeste do Brasil. Por lá tomou contato com outros povos nativos e participou das suas lutas pela terra.

Depois de sucessivas derrotas e de ver exterminadas as aldeias onde viveu, migrou novamente para a cidade. Deste ponto em diante ninguém sabe muito sobre a vida do velho Sepé, era assim que o chamavam. Num resumo da história, conta que por ter se perdido no mundo do vício, foi internado em um hospício. Ali ficou como um indigente durante muitos anos, quando finalmente conseguiu fugir embrenhou-se nos matos e ali viveu por vinte anos... Sozinho. Tempo necessário para esvair sua dor e a raiva que acumulou de tudo e todos ao seu redor. Tempo necessário para reconstruir-se, para não sucumbir ao ódio.

Durante esse período, tratou de reencontrar-se com a terra, foi o jeito que encontrou para sobreviver. Reaprendeu as leis da mata, das águas, do fogo e do ar. Integrou-se de tal forma à natureza e passou a ser parte tão radical dela, que passava invisível aos olhos humanos.

Somente alguém muito especial poderia vê-lo. Teria sido, diziam, um estudante que varava aquelas matas, que o encontrou e aprendeu com ele sobre a vida. Mas o jovem nunca havia revelado sua localização, pois o protegia, e somente permitia o contato quando confiava totalmente nos propósitos de alguém.  

Desconfiei seriamente que aquele peão o conhecera. Mas percebi que não me contaria nada mais além do que havia narrado.

Depois de ouvir o causo, não sosseguei até conhecer o tal estudante. Vaguei muito tempo por todo o Estado, e por onde andava, falava do assunto tentando achar uma pista.

Quando encontrei o amigo do velho Sepé, ele já era um professor doutor em antropologia e tinha quase quarenta anos. Consegui falar com ele, que negou veementemente tudo e divertiu-se a minha custa.

Não me dei por vencida e fiquei por perto e fomos tecendo amizade. Trabalhei um tempo para ele, até que confiasse em mim e, assim, me permitisse o contato com a tal lenda viva. Este era meu plano.

Certo dia, num inverno dos mais intensos que tivemos, ele me disse que iríamos dar um passeio. Que eu me preparasse para uma longa caminhada.

Partimos com chuva e a certa altura do caminho, depois de muito andar em mata fechada, a pequena trilha terminou e tivemos que seguir a pé. Nunca senti tanto frio, mas não reclamei. Nos momentos mais difíceis, fazia questão de mostrar-me uma mulher forte, do tipo que vai aos lugares onde todos pensavam que as mulheres jamais iriam.

Chegamos a uma cabana de um formato que eu não conhecia. Ela fora construída em terreno mais alto. O teto era rente ao chão e para entrar descemos alguns poucos degraus. Sobre o chão batido uma pequena fogueira ardia, o ambiente era quente e tinha cheiro de ervas. Sentado em cima de uma espécie de mezanino estava ele. Emocionei-me às lagrimas. Seu nome era, em língua charrua, “homem das quatro luas”.

Ele veio em nossa direção e aconselhou que tirássemos as roupas molhadas, nos oferecendo vestes secas. Sentamos à beira do fogo, deu-nos chá e carne assada. O professor e o índio falavam de assuntos que eu não tinha familiaridade, isso não me incomodou, porque estar ali abrigada da chuva e do frio já era um presente. Recostei-me sobre os pelegos e dormi, acordei na madrugada e os dois ainda conversavam.

Começa agora a história que me levou a escrever. O índio falava sobre inverno e amor, mais que isso, sobre os deslocamentos culturais e civilizatórios. Ouviu o causo de um dos poucos sobreviventes de seu povo, que as contava apenas uma vez, para que todos se esforçassem ao máximo para memorizá-las. Recomendava que guardassem com cuidado, pois esses ensinamentos poderiam salvar suas vidas.

“Certo dia um belo jovem de cabelos e olhos claros chegou a sua aldeia, viajava a cavalo e se mostrou muito amistoso com o povo dali. Fez várias visitas, mas ninguém sabia de onde vinha e quem era. Apesar de lembrar um soldado desgarrado, trazia uma flor no chapéu.

Uma índia ainda muito jovem se apaixonou pelo gaúcho, que não parecia notá-la, quando esta lhe oferecia comidas e bebidas assim que chegava à aldeia. Mas nada disso escapava do olhar da tribo e principalmente do cacique. Este lhe repreendia assim que o tal fulano ia-se embora.

Certa vez, num inverno semelhante a este, onde o vento assobiava e gelava os ossos, o fulano voltou e a indiazinha manteve-se a distância.  Ele ali permaneceu por cerca de dois dias e quando se foi ninguém percebeu que ela desaparecera também.

Contam os que a encontraram congelada e coberta de flores, que teria ido com todas as suas roupas ao caminho que o seu amor cruzaria e após horas andando abrigou-se numa pequena cabana abandonada. Ali deitou seu chale de lã de ovelha e colou flores em parte do seu corpo, e aguardou ao lado do fogo por algum barulho que denunciasse a chegada dele. Ao abandonar a cabana com pressa arrastou para perto do fogo o pala, e saiu a se exibir ao paladino, com seu corpo quase nu, envolta nas mais coloridas flores que o inverno ainda permite. O cavalo assustado empinou e, após dominá-lo, o tal homem branco deu meia volta e seguiu a galope. Contorcendo-se de frio e dor, viu entre lágrimas a cabana incendiar de forma irremediável, e correu pela floresta aos gritos para que ele a levasse. Falava numa língua incompreensível para aquele homem, que morreria de frio se este a deixasse ali.

Somente dois dias após o fim das terríveis tormentas que castigaram a região, os seus irmãos puderam encontrá-la. “Com o corpo ainda intacto, roxo e coberto pelas flores do amor, que não a protegeram do rigor daquele inverno”.

Seguimos viagem no dia seguinte, sem que eu tivesse coragem de dirigir palavra àquele homem. Na despedida sussurrei apenas um adeus. Saí dali pensando que aquela história fora para mim. Perguntei-me, durante muito tempo, o que ele queria me ensinar, mas tinha certeza que havia inventado aquilo tudo.

Continuei trabalhando com o doutor Eduardo por certo tempo, pesquisando o povo charrua e aprendendo mais do que em qualquer escola que houvera passado. Ele nunca me permitiu falar sobre o assunto e por vezes temi ter imaginado tudo aquilo.
A vida me conduziu para outros caminhos, e no momento de me despedir, tomei coragem de perguntar: “Eu imaginei aquela viagem que fizemos para conhecer o índio charrua?”. Ele sorriu e disse: “Por que esta necessidade de certezas? Lembra-se do que ele falou? Seu avô lhe contava as histórias apenas uma vez, como tu vais viver com ela, já não é mais problema dele”.

Já mais velha, percebi que em minhas andanças pelo mundo, movida por uma curiosidade sem medida, eu não respeitava nenhuma ordem natural. Contabilizei inúmeros sofrimentos desnecessários por conta disso. Compreendi que fora para mim aquela breve história. Compreendi também que cada história traz um tanto do narrador, e outro tanto do ouvinte, de nossas experiências e nossas intenções. Deste ponto de vista era tudo verdade, uma verdade minha e dele.



Ficou-me uma dúvida besta, que criei para revisitar aqueles acontecimentos, eu acho: Quantos anos tinham, afinal, o homem das quatro luas?

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