quinta-feira, 6 de agosto de 2015


Por Marina Ruivo

Lançado em abril deste ano pela Geração Editorial, Abandonado, segundo romance de Vinícius Pinheiro, veio parar às minhas mãos por meio de Luiz Brás. Até então, eu nunca havia ouvido falar de seu autor e, na verdade, eu fui apenas uma intermediária, já que Luiz me deu o livro com a missão de fazê-lo chegar até Manoel Herzog, pois sentiu haver uma espécie de parentesco literário entre ambos os escritores (coincidentemente, Vinícius e Manoel são nascidos em Santos). Antes de entregar a Herzog, porém, comecei eu a ler o livro e não conseguia parar.

Concluída a leitura, a verdade é que não sei dizer se concordo ou não com o ponto de vista do Luiz sobre o tal parentesco. Para mim as obras de Pinheiro e Herzog são diferentes e preciso deixar que as leituras se assentem um tanto mais para tentar fazer as comparações. Mas, sei dizer que gostei bastante de Abandonado, o qual li quase de uma tacada só, envolvida com sua trama e com seus personagens e sempre com a pergunta “e agora, o que vai acontecer?” me movendo a prosseguir a leitura.

Depois de finalizada, passei alguns dias numa espécie de convivência com Clara Bernardes e Alberto Franco, como se a qualquer momento fosse saber novas deles. Era como se a narrativa não tivesse acabado, podendo continuar a qualquer momento. Os dois são personagens muito fortes, com uma concretude que de fato me confundiu mais de uma vez, numa breve e suave percepção de que fossem pessoas reais, e não seres de papel. Um impacto grande e que me fez recordar as palavras de Antonio Candido sobre a personagem do gênero romance e o modo como a conhecemos. Tal personagem sempre é muito menos rica do que nós, seres de carne e osso. No entanto, o bom romancista a tece de tal forma, na escolha de suas características essenciais, que com ela obtemos um tipo de conhecimento que, em nossa vida, nunca chegamos a alcançar do outro, mesmo daquelas pessoas com quem convivemos de perto. O outro, na vida real, é sempre um estranho, um enigma – e mesmo nós somos um enigma, e não somente para os outros. Mas, no romance, a personagem é construída de maneira que parecemos compreendê-la por completo, nela projetando os abismos todos da existência.

E é assim que se dá com Clara e Alberto. Ele é o narrador deste romance que se compõe de uma história que, no presente da narração, está sendo escrita pelo próprio Alberto e é endereçada a um personagem específico (o qual não posso dizer aqui para não entregar o enredo). Temos, portanto, o romance dentro do romance, numa mise en abyme. A vontade de Alberto, no entanto, era a de ser cineasta, mas ele não havia conseguido e, por essa razão, fazia qualquer serviço para sobreviver, isso até conseguir arranjar um emprego de jornalista num grande jornal, o que possibilita que Abandonado revele por dentro as muitas mazelas vividas pelos jornalistas nos dias de hoje – e Vinícius Pinheiro fala com conhecimento de causa, jornalista que é.

O jornalismo que aparece nas páginas do romance é o contrário do glamour que algum desavisado ainda poderia projetar sobre as redações. E isso mesmo quando o protagonista é alçado a um posto melhor, em que não precisa mais cumprir jornada de catorze horas diárias. Ele passa a não precisar mais cumprir tal jornada e, tampouco, a não precisar fazer mais nada: suas palavras e textos não são nada, não significam nada, o jornal não precisa delas.

Contudo, o que move verdadeiramente Alberto Franco ao longo do romance, mais, muito mais do que o roteiro que ele de fato acaba sendo chamado para fazer – a partir de um romance de um escritor pouco conhecido –, é Clara Bernardes. Ecoando a diva Sarah Bernardes no universo rebaixado do romance, próprio da ficção irônica, para tomarmos a terminologia do crítico canadense Northrop Frye em sua Anatomia da crítica, Clara tem uma característica de Sarah: a voz. Mas não é uma cantora lírica, e sim uma dubladora de filmes B que também é atriz e que consegue atingir seus quinze minutos de fama por razões outras e não muito afins com sua esfera própria de atuação.

Clara é a paixão ensandecida de Alberto, o qual, sabendo-se não correspondido, insiste até as raias do absurdo, rastejando aos pés da moça, cuja característica básica de atriz – aquela que sabe interpretar (e, em certo sentido, fingir) – é lembrada em diversos momentos no enredo. Contando a história dos dois e dos personagens que coabitam mundos parecidos aos deles, Abandonado traz para suas páginas a questão do fingimento, da arte, da ficção, e o faz de modo muito interessante. 

Não estamos na presença de um romance de ruptura nem de uma obra genial. Mas o romance não se pretende isso. E, o que se pretende, realiza muito bem: contar uma boa história, com personagens interessantes que fisgam o leitor e o fazem senti-los reais. Em um cenário em que muitos autores trilham o caminho centrado apenas na linguagem, para o qual o enredo não parece importar, é de se saudar uma ótima obra que aposta e insiste na velha magia da arte narrativa.

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