quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Imagem roubada do blog de Luiz Bras

Por Tadeu Sarmento

Difícil escrever sobre livros emblemáticos, livros que, logo percebemos, nos servirão de ponte entre o século XXI e um futuro o qual não sabemos ainda se virá (e depois da leitura deste livro, sinceramente, esperamos que não).

Podemos começar dizendo que Distrito Federal (DF) é o livro que Zé Agrippino de Paula teria escrito se vivesse tempo suficiente para se desencantar com a democracia brasileira sob o governo corrupto e incompetente da esquerda brasileira. Pois da direita já se esperava de tudo e o genial autor de Panamérica (dono de uma mente lúcida que o ordenava vestir bermudas por cima da calça jeans) sabia disso. Ele só não sabia que o que viria depois seria bem, bem pior.

Mas há outras pontes ou sombras de uma árvore genealógica literária (frutuosa), debaixo da qual DF cria raízes e ganha fôlego. Trata-se de Não Há Nada Lá, romance imprescindível de Joca Reiners Terron. Isso porque DF é a resposta à pergunta sobre a morte do livro, formulada por Terron há mais de dez anos: “como morrem os objetos perfeitos”?

Bem, eles morrem para renascerem como rapsódia. 
Misto de romance de suspense com revistas de ficção científica, DF não cumpre com as exigências de nenhum dos gêneros, e a “rapsódia” indica apenas que o livro, apesar de poder ser classificado com a pecha de “romance”, consegue, sem grandes alardes, atingir aquilo que os modernos atrasados defendem como inovação e os concursos literários como economia de recursos: o hibridismo das formas. De qualquer modo, seguiremos conformados à afirmação de que se trata de um romance e, mais que isso: é um livro que surge na hora certa, no lugar certo, e acerta todos os alvos a que se propõe. E acerta longe e na mosca, como em uma escola de tiro-ao-alvo para profetas.

Logo, DF é desde já um – clássico. E se nos adiantamos em afirmar sua importância (esperamos ser os primeiros a tê-lo feito) é para que quando desembarcarem na terra, no intuito de estudar nossa civilização depois do apocalipse nuclear, os antropólogos marcianos notem que, pelo menos, algumas vozes apaixonadas se levantaram a favor desse romance quase sumariamente ignorado quando de seu lançamento (2014). O que já era de se esperar, afinal de contas, é característica dos covardes não lerem nem falarem sobre os corajosos. Esse, afinal, é o acordo entre as ovelhas: “se não falarmos do lobo, será como se o lobo não existisse”. Mas o lobo existe, assim como existiram resenhas que trataram sobre o livro com paixão e propriedade. O que estamos dizendo aqui é que em torno de DF não houve todo o barulho, todo o estardalhaço, que a obra merecia. Mas sobre isso trataremos mais adiante.

Por hora, a pergunta formulada por Gary Snyder: “é culpa do coiote que exista morte no mundo”? Se a resposta for não, sapecamos outra: e que lugar melhor que Brasília para assassinos em série de políticos corruptos laborarem? Nada mais óbvio que essa ideia que, de tão óbvia, ficamos indagando por que ninguém pensou nisso antes. Claro que alguém pensou, faltando apenas as glândulas testiculares necessárias para dar livre curso a essa imaginação maravilhosa. O fato é que corrupção gera violência e, em uma sociedade corrupta e violenta até o talo, o assassinato de políticos corruptos se torna uma das belas-artes sonhadas por De Quincey. Então podemos dizer que o autor de DF é um De Quincey leitor de Philip K Dick?
Sim, mas vamos devagar, pois essa procissão é a pé.

Longe dos falsos dramas da consciência dos bem-intencionados, a violência gráfica descrita em DF é RPG puro: precisa, imagética, colorida. No livro, aliás, “Distrito Federal” é também um jogo de RPG. Jogos dentro do jogo, portanto, como uma cebola lisérgica em 3D. O livro nos presenteia com o acesso dirigido à mente de um assassino e o jogral com o eco de vozes narrativas (a “agência de notícias”, a “brainnet”) é apenas um dos labirintos desse jogo. O centro é a voz de uma narradora que se dirige a um dos personagens e que depois se dilui na fluidez do discurso em segunda pessoa (algo pouco usual na ficção, onde superabundam os discursos em primeira e terceira) até se estilhaçar no decorrer da leitura, sem com isso confundir o leitor. É por que o tom permanece igual em praticamente todo o livro: frases curtas, secas, carregadas de objetividade com volts de lirismo em certas partes. É que o discurso em segunda pessoa (dificílimo de ser manejado) tem essa função de colocar o leitor dentro do livro, dando a impressão de que a “voz” se dirige diretamente para ele.

A democracia é um jogo tanto quanto a literatura. O assassino caça corruptos pelo cheiro porque eles fedem (alguém seria capaz de discordar?) e quando o bom senso do leitor implora para que se aguarde a lei vir punir os safados, logo vem à lembrança do cidadão que lê que isso não acontecerá, pois os gângsteres profissionais criaram as leis para proteger a si mesmos. Assim, o discurso que defende a matança logo ganha nossa adesão por cinismo: concordamos com ele – e nos assustamos por concordarmos, o que é um bom sinal, mas é o único.

Além desse assassino, outros personagens míticos acompanham o banho de sangue: o curupira e o saci (que incorporam nas pessoas e saem matando os facínoras de gravata), os exus, cucas e oguns, são apenas alguns exemplos de personagens do folclore tradicional ressuscitados em DF para participar do pesadelo de um futuro que é agora. A metáfora é a das forças da Natureza se levantando contra o avanço do capitalismo corrupto que a dilapida e destrói, mas é mais que isso. Conversando sobre o livro com a poeta Adriane Garcia, ela me alertou para o fato de que DF, na verdade, é um livro que nos devolve um país na ficção. Nesse sentido, trata-se de um romance histórico, de identificação nacional, a exemplo do premonitório Caramuru, escrito pelo agostiniano José de Santa Rita Durão ou do Iracema de José de Alencar, com a diferença de que em DF os nativos são ciborgues e andam bem mais armados.

DF é um Mad Max com boitatás. O âncora do jornal que, estupefato com a notícia de uma dentista morta gratuitamente e de maneira brutal, rompe ao vivo o protocolo e defende a pena de morte em rede nacional, passa a ecoar sua indignação por todo o livro. O novo pacto social, que afinal nem é tão novo assim, mas que é proposto em um momento de loucura (ou lucidez extrema) é: “olho por olho, dente por dente”.  A tese é que a sociedade em seu estado atual de decadência ininterrupta precisa de uma divisa clara, a qual transcrevo aqui: “a vida é o bem mais sagrado, se uma pessoa impede a outra de respirar não é justo que continue respirando”. Assino embaixo.

DF está mais para Hobbes que Rousseau, pois é o desdobramento da ficção científica às questões levantadas no livro Raízes do Brasil. Ao pregar o extermínio de todos os descendentes de Macunaíma, DF transforma-se na versão atualizada do clássico historiográfico de Sérgio Buarque de Holanda.

Ocorre que “a causa não é necessariamente uma razão” e os assassinos que em DF se inspiram nos passos do pioneiro, não querem fazer justiça, mas inocular mais caos ao caos. É que a matança de corruptos conquista seguidores nos quatro cantos do país (talvez seja este um dos medos que tentam manter DF na obscuridade) e filiais de assassinos imitadores se espalham, até que ninguém se sinta mais seguro depois de fraudar uma licitação. É a violência se reproduzindo pelo contágio do exemplo, tanto quanto a corrupção.

JG Ballard teria adorado DF. Assim como Ballard, trata-se mais de intuir o labirinto psicológico dos homens futuros que supor viagens até Marte, e de transmitir essa intuição por meio de frases lapidares (“uma semente é uma bomba que explode devagar”) e de referências tão diversas quanto necessárias, com a sorte de essas referências não pesarem na leitura do livro. É que a narrativa flui; o autor mantém o pulso da aventura como se fosse um dublê de escritor de juvenis. É um livro que terá que virar filme, ser dissecado por cientistas sociais e muito, muito, lido.

Lançado em 2014 pela Editora Patuá, Distrito Federal passou ao largo dos prêmios literários nacionais, apesar de estar anos-luz à frente do que vem sendo produzido atualmente por aqui em termos de ficção, pelo menos do que tenho visto e lido (e não vi nem li pouco, acreditem). Mas é característica dos grandes livros passarem desapercebidos. Só assim correm mais rápido em direção ao futuro. Depois de lê-lo, chegamos a condenar o fato de ter sido ignorado desse jeito. Porém, segundo Italo Svevo: “não existe unanimidade mais perfeita que a do silêncio” e DF é como o Senilidade do escritor triestino: um livro que, retomado anos depois, lançará uma luz de suspeita sobre todos os que preferiram mantê-lo na obscuridade, de modo que os que se calaram diante de DF um dia terão que prestar contas nos futuros tribunais da consciência histórica.

Não que o autor de DF não soubesse que o livro seria indigesto antes mesmo de começar a escrever. E aqui finalmente chegamos na questão do autor. Alguém que assina como Luiz Brás escreveu o livro, alguém que assina como Teo Adorno o ilustrou. Mas esses são seus nomes verdadeiros? Dar um nome a si mesmo é começar a morrer e alguém que escreveu esse livro talvez tenha entendido que o melhor é viver eternamente no apagamento do cruzamento de vozes. O autor nunca foi importante. É só no espaço que demarca a fuga do autor que a obra toma corpo. O escritor que quer falar mais ou aparecer mais que sua obra já disse ou apareceu o suficiente para que a leitura de sua obra deixe de ser relevante, de modo que não o lemos, mas assistimos ao macaco que matraqueia atrás de uma máscara. Quem escreveu DF é um fantasma (Nelson de Oliveira?), alguém que só ganha contorno pelas vozes discordantes que sua narrativa costura. Assim como o assassino. Esse fantasma abriu mão da política de ressentimentos dos escritores “atuantes” em nome de tempo e de liberdade para criar.

Só uma imaginação livre das exigências dos holofotes é capaz de escrever algo como DF. Só um louco, um abnegado é capaz de comer essa paçoca dentro de uma nuvem de poeira radioativa. Em DF, a bomba atômica é uma casa de caba. Mas o fantasma que escreveu esse grande romance não é ingênuo e, ao perceber a pouca recepção do seu livro, escreveu outro em resposta. Quer dizer, não se ressentiu, não fingiu a própria morte no Facebook, não figurou em fotos pornográficas nem fez o marketing do artista marginal incompreendido, de chupeta na boca, evocando o espírito dos mortos para reclamar de “panelinhas literárias”. Ao contrário disso, elaborou a própria decepção com alta Literatura. O livreto bizarro e irônico Citizen Who (assinado por Nelson de Oliveira, ilustrado por Teo Adorno) é uma sátira swiftiana, de leitura fundamental, que conta as peripécias do famigerado “Escritor Que Não Tem Boas Ideias” em luta contra a “Opinião Pública”. Trata-se de uma grande defesa da imaginação contra os rótulos literários. De uma grande defesa do uso da intertextualidade em uma época em que a originalidade é impossível. De uma grande defesa da Literatura contra os preconceitos do mercado. No fundo é um livro esperançoso, que nutre esperanças pelo ofício de ler e escrever e pela fé de que ainda existam bons leitores. E eles existem!

O anonimato, a questão da autoria, do desaparecimento, do pastiche, da reinvenção, todas essas questões que levantei no meu Associação Robert Walser para Sósias Anônimos parecem brincadeira de criança perto da força com que esses temas ganham relevo no DF. De qualquer modo, acredito que esse jogo de sombras, assassinos, copiadores e fantasmas, em DF, sirva também para que seu autor não se sinta devedor da obra-prima que escreveu. Quem pariu o monstro se envergonha: “quanto o sol cobraria para dar uma volta ao meu redor?” – o que, em tempos de egocentrismo doentio e exacerbado, é até muito.

No fim das contas, a reparação. DF nos vinga (no plano da imaginação) da pilhagem que nossas quadrilhas organizadas, eleitas pelo voto popular, andam cometendo. É um romance reparador para a nossa geração de traidores, de covardes, de ativistas de sofá, de preguiçosos e de acomodados totais. Mas não foi escrito para nós, porque morreremos sem ter visto país nenhum e o DF é nosso prêmio de consolação e nem merecemos tanto. Temos votado mal e baixado demais a cabeça. Sobretudo, temos lido mal. Agora é trabalhar pela próxima geração, com vistas à próxima geração, essa mesma, que nos acena da beira da nossa cova, ocupando escolas em São Paulo para tomar de assalto um direito legítimo que lhes estava sendo negado. Eles são o futuro. É para eles, e não para nós, que o DF foi escrito.

Por que uma adolescente, amiga da filha da poeta Adriane Garcia, ficou fascinada (FASCINADA) pelo livro? Porque é um livro que fala aos jovens e que sempre falará aos jovens. Como o Quixote, o Moby Dick, o As Viagens de Gulliver, como todo grande livro. E está dito.
Ganhei alguns inimigos depois dessa resenha? Espero que sim. Quando um escritor nos surpreende tanto quanto Luís Brás me surpreendeu, queremos dividir com ele até seus inimigos. Que um dia Eduardo Cunha & sua trupe de canalhas semelhantes leia o DF. Para saber o que o futuro lhes reserva. Pois essa geração que ocupou escolas em São Paulo não engolirá tantos sapos quanto nós engolimos. Pois essa geração que apanhou da polícia nas ruas para preservar seu direito à educação não se contentará com tão pouco quanto nós nos contentamos. Eles são o futuro, eles são o evento, eles são a audiência do DF. É nisso que acredito. É nisso que preciso acreditar para viver o restante dos meus dias até a derradeira hora de morrer. Mas, não em paz. Nunca em paz.

0 comentários:

Postar um comentário

Os comentários ao blog serão publicados desde que sejam assinados e não tenham conteúdo ofensivo.