Foto de Gregorio Gananian
Por Teresinha Prada
No dia 1º de janeiro de 2016 a
cultura musical brasileira perdeu um de seus mais efetivos agitadores: Gilberto
Mendes. Ele viveu seus 93 anos realizando inúmeros eventos artísticos,
materializando incontáveis produtos culturais, colaborando para novas carreiras
e criando obras icônicas que entraram para o acervo mundial da música erudita.
Entretanto, é de agora em diante que seu nome e sua produção começam um novo
tempo; no forçado distanciamento é que analistas, estudantes, públicos,
compositores e intérpretes caminharão por sua poética e nos informarão das tantas
facetas desse artista vivaz.
Desde o período em que convivi mais
com esse criativo compositor, muitas de suas considerações calaram fundo de
imediato em mim, outras foram surtindo efeito no acerto do tempo, e o saldo
dessa relação mentor e discípulo permanecerá, tamanha foi a sua força em minha
formação e atuação – bem sei que isso aconteceu para muitos de meus colegas. Selecionei
algumas memórias, expressões mais acentuadas que recordo das muitas vezes em
que a sorte me propiciou contato com Gilberto Mendes e que agora sublinho aqui.
Paixão – O amor pelas Artes surgiu muito cedo em
sua vida e a música em especial; vivia-se a era do rádio como grande mídia, a
incitar sua imaginação com as vozes e melodias que ouvia; o cinema gerava astros;
o mistério do rádio e o encantamento do cinema criaram uma incomensurável
paixão em Gilberto; ele podia citar de cabeça inúmeros roteiros de filmes e
programas de rádio e a música permeando sempre essa memória viva, que
surpreendia a todos pela riqueza de detalhes e constantemente com uma história
ligada à época. Cada disco, cada partitura, ele sabia a origem, o quando e
porquê daquilo; tudo era valorizado, dimensionado por sua fala, suas histórias
contadas com grande paixão pela Arte, pela vida. Gilberto irradiava essa paixão
a todos ao seu redor, instigando a cada um que também vivesse sua própria
história com tal força e paixão.
Loucura
– Gilberto Mendes promoveu a ruptura com o passado para propiciar o novo, o experimentalismo,
o objeto sonoro e a essência da Arte, a não linearidade; tudo isso foi a força
necessária para romper com regras e esse não enquadramento gerou polêmica,
escandalizou o público ainda “burguês”, tirando-o da zona de conforto, e tudo o
que a essa música nova se ligasse foi tachado de irreverência no mínimo,
loucura no máximo, uma música de excêntricos. No entanto, unindo-se à paixão, a
loucura esteve presente sim, mas enquanto subversão da ordem, do que era esperado,
do que estava controlado, tirando as antigas certezas de campo.
Técnica:
a base musical de Gilberto Mendes foi obtida com grandes nomes do cenário
brasileiro da época – Caldeira Filho, Savino de Benedictis e a grande pianista
Antonieta Rudge; o autodidatismo de Gilberto na composição, o exame apurado de
grandes partituras e o encontro de seu próprio caminho como criador foi um trajeto
construído sempre ao lado da vanguarda e ao largo da tradição nacionalista, com
raríssimas exceções. Essa formação resultou numa extrema liberdade para entrar
e sair de qualquer “fase” em sua produção, a ponto de misturar tantas vertentes
com muita naturalidade. Talvez por ter navegado em mares inventados por si
mesmo, ele fluía de uma parte a outra com suavidade.
Talento:
suas obras mais experimentais fortaleceram a disseminação da música nova no
Brasil, principalmente o uso do grafismo, em que se revelam os critérios, a
geração e o desenvolvimento dessas obras, fortemente estabelecidos por sua
produção independente da Europa; mais tarde vemos em descrições de suas músicas
todo seu talento tanto para harmonizar quanto para serializar uma obra, desconstruir e fundir o jogo de timbres e
contrastes; a ressonância e a reiteração de temas de seu interesse fincaram um
estilo que já logo reconhecemos como seu – como acontece à maneira dos grandes,
o enlevo sonoro de Gilberto Mendes é reconhecível.
Cultura:
a paixão pelas Artes, o seu diálogo permanente com todas as áreas artísticas e
o interesse pelo Novo em todos os cantos do mundo, fizeram com que Gilberto
fosse reconhecido como cosmopolita, atualizado, em voga – daí que estar com
ele era se sentir parte disso tudo, um passaporte para o futuro. Além do que,
sua leitura das artes, história, geografia, política, do popular, culto e massivo
causavam uma certeza da aproximação de todas as áreas do conhecimento, de um continuum, e de um enorme discernimento
capaz de explicar e clarear tantas questões, a partir de suas próprias experiências. O mais
emocionante era testemunhar sua cultura em relação ao Brasil – “Um país que tem
índios! Que maravilha!”, ele dizia.
Erudição:
o foco de Gilberto era na “alta cultura”, sem medo de elitismos, e via-se nisso
a importância que dava para as estreias de obras musicais – um dos maiores ensinamentos
que assimilei dele foi a importância da constante produção de novos projetos e
a consequente apresentação, sem visar o retorno imediatista ou de grande porte,
mas sempre estar em cena. E foi defendendo essa alta cultura, que o vi diversas
vezes pronunciar a sua opinião sobre a situação da música erudita, de estarmos
“no gueto”, no ponto mais ínfimo do conhecimento e do alcance dos brasileiros,
inclusive pela atual elite, que não se interessava mais por ela. Nem por isso,
a erudição precisava ser preterida e a cada oportunidade oferecida, Gilberto
expressava toda a sua vasta experiência erudita, com fôlego de quem falava disso
pela primeira vez.
Expectativa:
sua enorme generosidade e crença nos jovens eram um incentivo a mais para seguirmos
em frente; até os receios e bloqueios ele sabia curar; do alto de seus muitos
anos de vivência na área, sempre podia ver o lado positivo, o estímulo para
resistir e perseverar. E assim foi que Gilberto encaminhou muita gente no meio
musical, fosse pela chance dada em atuar no Festival Música Nova, fosse pela
simples atenção em ouvir e aconselhar tantos jovens e até profissionais. No
meio artístico em geral, de dança, teatro, letras, ensino, Gilberto transitou
com extrema desenvoltura, pois sabia do que estava falando, e possuía as
melhores expectativas para com os iniciantes, desde alternativos a verdadeiros outsiders de quem nunca duvidou.
Assim é que para manter essa pureza
de coração, para viver sua música, caminhando pelas avenidas com Gilberto Mendes
em nossos ouvidos, é que estamos agora aptos para refletir e reverberar seu
trabalho em novas produções, em novos projetos, como o mestre nos ensinou.
Agora é que as suas sábias palavras e ações serão cada vez mais difundidas.
Gilberto é agora.
Bacharel em
Violão pela Universidade Estadual Paulista – UNESP; Mestre em Comunicação e
Cultura pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina – PROLAM
e Doutora em História Cultural, ambos pela Universidade de São Paulo – USP;
Professora Associada da graduação em Música e do Programa de Pós-graduação em
Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. É autora do livro Gilberto Mendes: vanguarda e utopia nos
mares do sul (2010, Editora Terceira Margem).
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