quinta-feira, 7 de janeiro de 2016


Foto: Bruno Shultze

Por Carla Delgado de Souza


É muito difícil dar conta, em tão pouco espaço e em tão pouco tempo, do vazio que a morte de Gilberto Mendes causou, não apenas para aqueles que ele amou e que o amaram (como eu), mas para o campo artístico brasileiro. Nascido em 13 de outubro de 1922, oito meses após a arte moderna brasileira ter se apresentado ao público burguês paulistano, Gilberto Mendes viveu sob o signo da modernidade durante toda a sua vida. A provocação, a busca pelo novo e pela invenção e a radicalidade de propostas estéticas sempre foram as tônicas de sua trajetória artística que, no entanto, nada tinha de soberba ou arrogante.
Ao contrário do que muitos dizem a respeito de sua personalidade, Gilberto jamais definiu-se como um “gênio” – alguém que romântica e misticamente receberia as ideias estéticas da vontade divina e as traduziria para nós, reles mortais. Não é possível dizer que Gilberto Mendes não acreditasse na existência de gênios, mas certamente ele não se considerava um deles. Para ele, arte (e música, principalmente) era o resultado de um processo que envolvia, antes de tudo, muito aprendizado e um domínio técnico preciso.

Quando decidiu pela vida artística, Gilberto sabia muito bem o que ela exigia: a atenção constante, o estudo contínuo, a busca pela erudição, atitudes imperativas, lutas, desejos e ambições. Também exigia, era verdade, o entendimento claro do papel social que ele ocupava no mundo: sabendo-se oriundo de uma família de classe média, cujo principal provedor havia falecido muito cedo, ele optou pela carreira de funcionário público afim de assegurar sua subsistência. Era impossível, para ele, ganhar dinheiro com a arte, ainda mais com a arte que pulsava em suas veias.

Nessa escolha, Gilberto Mendes não foi o único. Vários artistas de grande envergadura no século XX fizeram a mesma escolha e percorreram o mesmo caminho trilhado pelo compositor santista. E, embora o fato de conciliar a vida como funcionário público com a trajetória artística não seja assim tão simples, a fórmula precisa já havia consagrado anteriormente escritores como Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Mello Neto, por exemplo. Até mesmo o maior nome da música erudita brasileira, Heitor Villa-Lobos, havia se valido de sua posição como superintendente de educação musical e artística no governo Vargas para viabilizar a continuidade de sua trajetória composicional.

Assim, aos dezenove anos de idade, Gilberto Mendes desistiu de estudar Direito e resolveu estudar música no Conservatório Musical de Santos, dirigido pela grande Antonietta Rudge. E estudou. Durante toda a sua vida Gilberto Mendes manteve acesa a chama pelo conhecimento e entendia que este não pode ser considerado de fácil ou rápida aquisição. O envolvimento com o universo estético não poderia, nunca, ser estático para ele. Ao contrário disso, demandava uma relação intensa de amor, paixão, ódio, dor, melancolia.

A formação artística é lenta, tem seu próprio curso. Não é possível, em um passe de mágica, obter o “olho” ou o “ouvido” do artista maduro. Gilberto Mendes me ensinou isso: não devemos ter pressa para “entender as obras de arte”. Ao mesmo tempo, ele me ensinou que estudar sua trajetória exigia que eu mesma aprendesse a lidar com o universo artístico de maneira menos óbvia ou calculista. Era preciso aprender a escutar o mundo para poder ouví-lo; era preciso entender suas metáforas literárias; era essencial que eu, também, me dedicasse a um aprendizado sensorial da realidade a minha volta.

No imediatismo das relações sociais e da própria produção de conhecimento características da atualidade, verifica-se um desprezo pela erudição, pela formação sólida, pela maturação das ideias. Em uma época em que não há tempo para nada, tampouco há a possibilidade do amadurecimento estético, da reflexão sobre as práticas artísticas. Mesmo os melhores músicos do momento acabam sendo muito mais técnicos do que intelectuais. O mesmo se aplica às outras artes e ofícios, bem como às ciências. Gilberto Mendes era a exceção que confirmava a regra: como os demais intelectuais de sua geração e de gerações ainda anteriores, ele não compreendia o fazer musical como algo exclusivo das salas de concerto, não tinha uma audição reduzida do mundo. E, além disso, entendia que para ser um bom compositor, é fundamental mergulhar nos desafios da arte. Logo, estava sempre disposto a discutir sobre qualquer assunto e a aprender com qualquer fonte.

O mundo contemporâneo, marcado pela superficialidade das experiências de qualquer espécie, é o lugar da antítese da arte e do ser artista que Gilberto buscou em sua vida. Sua trajetória, se estivesse se iniciando nos dias de hoje, já não seria a mesma. Sorte nossa ele ter vivido num tempo em que ainda era possível fazer da própria vida uma obra de arte. 

Carla Delgado Souza é graduada em Ciências Sociais pela UNESP (2002), mestre em Antropologia pela USP e doutora nessa mesma area pela UNICAMP (2011), onde defendeu a tese “Os caminhos de Gilberto Mendes e a música erudita no Brasil”, posteriormente publicada pela editora da UNICAMP com o título “Gilberto Mendes: entre a vida e a arte” (2013). É professora adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina e coeditora de Mediações – Revista de Ciências Sociais.



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