quarta-feira, 22 de junho de 2016

Fotografia de Steve Airey


Por Manoel Herzog


Olhava de longe os mais velhos, os que atingiram o primeiro pilar, de onde fisgavam tainhas. A gente não tinha barco, nem fisga pra pescar.

Fazer a fisga foi engenhoso. Arrumamos, na construção, meia barra de ferro fino, daqueles de fazer o estribo das colunas. Ferro três-dezesseis. Cortamos doze pedaços de vinte centímetros. Esquentamos pra modelar no fogão da casa do Tonico, o ferro ficando vermelho e o fogo ficando azul. Marretava numa pedra feita de bigorna; achatando a ponta da barra, mergulhava em água fria. Ficava uma pequena espátula, igual aquelas de dentista.

No esmeril do pai do Tonico a gente modelava uma ponta. Com a lima fazia sobressair uma farpa, uma saliência para travar na carne do peixe. Esculpimos, assim, doze pontas que depois encastoamos num pedaço de caibro de peroba. 

Pregamos a ponta de uma vara de quatro metros no meio do caibro, resultando de tudo um garfo de doze fisgas. Amarramos uma corda na base de modo que, uma vez capturada, a presa era suspensa, peso levando de encontro ao caibro. Tínhamos agora fisga e o mesmo poder que os moleques mais velhos. 

As tainhas corriam pro acasalamento naquele julho frio. Costumavam pousar em volta dos pilares, ali ficavam batendo as barbatanas suspensas feito colibris. O entorno do pilar ficava aureolado que nem santo de igreja, manando raio. Era assim que se via de cima da ponte.

O pilar era um bloco de concreto suspenso por um paliteiro de colunas que iam ao leito do rio. Nele se pendurava a escada, dois caibros de longarina com sarrafos atravessados, os degraus.

As tainhas costumavam chegar à ponte nas primeiras horas da manhã. Combinamos de acordar às cinco. A roupa, levávamos num saco plástico, nadando, até o pilar – não tínhamos barco. Naquele frio desistimos de entrar, melhor arrumar um barco, fazer um, quem faz fisga faz tudo.

O meio do barco era largo, ia afinando nas pontas, até formar o bico da frente. Espichada a viga mestra e pregadas as costelas era tapar o fundo e as laterais com madeira de compensado e depois calafetar. Se calculássemos a aerodinâmica tínhamos construído um barco perfeito.

Decidimos lançar do canal, ir a remo até a maré. Bem vínhamos reparando aquele gato que boiava amarelo e inchado. Tempo de maré de quarto, as águas do canal subiam e desciam timidamente sem que o cadáver saísse do lugar. Baixamos a embarcação alguns metros de canal acima, navegando pretendíamos passar pela carniça. Entramos em dois, Chico e eu, calções arregaçados, para receber o barco da mão do Tonico que o baixava por cordas. Curiosidade do pessoal da rua, três mães testemunhavam, gente de outras ruas, todas as que desembocavam no canal. Elogiavam nossa inteligência. Depois do percurso pelo canal, a maré, e a praia de Santos, depois a barra, e o alto mar. 

Quando o barco baixou, com demora para valorização da cena, foi glória. Fui o primeiro a entrar, Chico segurava pra que não virasse. Estranhamos, a princípio, o balanço, mas todo barco balança quando se entra. Eu dentro, Chico subiu e começou ali o vexame. As laterais retas impediam ficasse parado. O barco ia para um lado, um corpo compensava para outro, outro descompensava, até que virou de borco. A multidão vaiava e ria, os mesmos que vinham elogiando. Mergulhamos no canal, engolimos água salgada com gato morto. Adiamos pelos dias de julho a pescaria de fisga, as tainhas se livraram. Dias depois, um defunto boiou na maré. Já era agosto. Tinha nojo de defunto. O mar bebe defuntos, carne corrupta. Seu sal é feito dos pecados do mundo.

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