terça-feira, 26 de julho de 2016



Por Ana Elisa Ribeiro

Por que será que Roberto – Erre – Amaral teve a ideia de pedir a duas mulheres idôneas e bem reputadas para escreverem pré e posfácio para este livro? Fiquei deveras encafifada com isso, desde que recebi o honroso convite para a empreitada leitora-escritora. Geralmente, não se lembram da gente? Mas nestas horas! Isto nem deveria se chamar prefácio. O certo seria prefácil, bem facinho mesmo, pra entrar no clima.
Abri o arquivo e encontrei este livro quase inviável. É a cara do dono. É a cara do pai, como queiram. É a galhofa eterna do Erre, só que agora poeta. Em versos curtos de fazer medo, Amaral propõe quase uma lista (telefônica?) com nomes de mulheres e o que elas inspiram, lembram ou despertam. De A a Z, as meninas que frequentam o matadouro do observador, mas com luxo, vejam bem. É que Erre é poeta, mas é filósofo, intelectual. Então não dá pra ler assim como se fossem só umas personagens. São ironias, sarcasmos e composições cheias de frestas intertextuais. Daí eu fiquei me sentindo mais burra. Será que entendi esta? Mas eu acho que entendi tudinho. Se não entendi, ao menos desconfiei.
53 [+ uma] mulheres do baralho, com ilustrações de Patrícia Ferreira, é um livro erótico. Desculpem-me os fãs de 50 tons de cinza, mas isto aqui é que é um poeta com bala na agulha ou em ponto de bala. Isto é literal. O eu lírico promete. E mete. Parece.
Veja-se a “Eneida” deste “glossário”: “não foi nada épico/descobrir que Virgílio/era virgem”. O canto da boca só ri por completo se a gente é leitor, conhecedor de clássicos, dono de um repertório mínimo da literatura universal. E a “Hannah”? Espiem-na: “o sentido do dasein meine liebe/não judia de mim/enfia logo o ser-aí”. Só mesmo tendo um pé na filosofia e outro na sacanagem, em bom e casto alemão.
Da literatura vem mais, como a “Iracema”, amplamente conhecida (e empurrada nos escolares) como a “virgem dos lábios de mel”, é ou não é? Pois a do Erre Amaral é assim: “foi-se o mel/dos grandes lábios/da ex-virgem”. A distorção total de um Alencar bem puído e a transgressão sexual da personagem. Pela descrição, podemos vê-la em posição ginecológica, com lábios bem desabrochados. 
Mas não é só pelo cânone que o poeta passeia. Não vai só pela trilha da leitura filosófica ou da literatura europeia. Amaral chega junto na cultura pop, incluindo Tarzan e Turma da Mônica. O naipe da “Jane” é este: “foi só eu depilar a piriquita/pro Tarzan/ fugir com a chita”. E a complexidade do que está dito prolongou meu riso frouxo e ainda me levou a filosofar sobre hirsutismo e taras sexuais. Viva a pelagem, minha gente! Esta prefaciadora descendente de portugueses ficou fã na hora!
Já a “Magali” aparece assim: “desgostou de outra frutinha/depois que passou a desbastar/a banana do cebolinha”. E agora? Como vou olhar na cara da Magali depois desta?
As 53 [+ uma] mulheres do Baralho são uma coleção – do baralho – de fantasias, desejos, fotografias, confissões. Estejam certos de que se trata de um livro para ser lido em voz alta. Por que perder a chance desta rima em “Vicentina”? “inesperada popularidade/ser a xoxota mais fodida/do grupo da terceira idade”. Sorte a da vovozinha aí.
Diferentemente da prosa do Erre Amaral, que emprega palavras & peso para narrar com densidade, estes poemas são arejados, cheios de humor e lascívia. A palavra, aqui, pinta com mais malandragem para brincar não só com o ritmo e a rima, mas com nossa literatura e nossas referências todas. É muita ousadia, não?
Não vou me alongar. Nem cabe. O negócio é dizer logo a que veio este livro mulheril. Ou mulherengo.

Ana Elisa Ribeiro é poeta e linguista.




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