quarta-feira, 18 de outubro de 2017



Por Luiz Cancello


É difícil fazer uma apreciação do novo livro de Manoel Herzog. Teriam de caber num mesmo balaio: o trabalho, a bandidagem, a dança e o samba, o composto, o branco e o preto (yin-yang?) e a jaqueira do cemitério. Somos todos maníacos para achar uma unidade na complexidade do universo. Nessa busca insana foram derrotados físicos, filósofos e alquimistas. Agora é a minha vez.

Em "Dec(ad)ência", seu livro anterior, Herzog faz um bildungsroman, com perdão da palavra, e nesta maravilhosa narrativa da jaca repete a dose. Voltamos a ter contato, aqui, com o universo do operariado cubatense, explorado no penúltimo livro do autor, “CBA - Companhia Brasileira de Alquimia”.

Em “A Jaca do Cemitério é mais Doce”, a vida de Santiago vai sendo pautada pela Putrefactio, fase do processo alquímico de que senti falta no romance sobre a CBA. De certa forma, o livro é uma junção dos anteriores: o romance de uma vida inserido na fábrica de Cubatão.

Menos sexualizado e menos psicanalítico que seus livros anteriores, percebo esta narrativa mais fluida, alternando-se entre os tempos da infância e das agruras do protagonista e de Natércia, que de judia só tinha um pedacinho do Nigredo, mas simbolizava a linhagem de meretrizes que a vida jogou no cais santista. E daí, da terra adubada com seus restos, brota a jaca mais doce, mais apta a ser alimento e adubo, putrefação e transformação.

A vida vem do campo santo, onde a dignidade das meretrizes é restaurada, numa Sublimatio alquímica post-mortem. Dali, da doçura da jaca, brota a vida que Santiago insiste em cultivar. Dali também descende a mulher que vai enfeitiçá-lo e o levará à morte simbólica junto aos mendigos da praça.

As figuras femininas fiéis, a doméstica, a japonesinha e a médica, contrapõem-se à aleivosia de Natércia, de resto uma personagem mais forte que todas elas. Estranho um pouco o papel da doutora, por ser a única que não tem história. Borboleteia entre o leito de Santiago e um algures ignoto. De onde vem e para onde vai?

Viver, disse Jung, é um lusus contra natura, nos tempos em que se levava a sério a entropia. A cada etapa da saga a morte espreita, na figura da malandragem, essa fímbria entre o samba e a navalha. Santiago vai driblá-la algumas vezes com astúcia, dançando esguio entre o Bem e o Mal, mas pagará um preço cruel: a ele nem um final digno é permitido. Sua condenação pela lei dos homens será interdita, mas isto o leitor vai descobrir quando chegar ao jardim da praça e der com o fantasma de Vivaldo perambulando por ali. Estranho; tenho a impressão de que Santiago flerta com a imortalidade.

Pronto. Sucumbi eu também à obsessão pela unidade. Poderia expressá-la de um jeito mais sintético:
— Gostei pra caralho!

Luiz Cancello é escritor, psicológo e músico de Santos 

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